TANATOFOBIA
Por Ademir Esteves – fevereiro de 2007
Personagens:
Clero – homem pálido e lento;
Verdugo – homem sujo, com olhos esbugalhados e famintos;
Gota – mulher melancólica, de roupas fartas sobrepostas;
Súcia – mulher que envelhece a cada fala.
Cenário:
Emaranhado de fios, como numa grande teia de aranhas. O chão é coberto por uma geléia viscosa. A luz entra de fora, raramente de cima, criando sombras e expressões fúnebres.
Clima:
Durante todo o espetáculo, ouvimos gemidos fracos, longínquos e ininterruptos. A música deve ser original, procurando distanciar-se da atmosfera cinematográfica.
CENA 1 – ASPECTO
CLERO ESTÁ APARECENDO ENTRE OS FIOS. VERDUGO OBSERVA A PLATÉIA, UMA LUZ APENAS EM SEU ROSTO AVIVA AINDA MAIS A EXPRESSÃO EUFÓRICA EM SEUS OLHOS. GOTA, NUM OUTRO CANTO, PARECE UMA BOLA DE PANOS, IMOVEL NO CHÃO. SÚCIA “BRINCA” ENTRE OS FIOS E A GELÉIA.
VERDUGO
Vou lhe contar como é o homem. O homem é tanto... E de tanto ser vira história pra ser contada. Como agora. Digo que lhe contarei sobre o homem, contudo o homem é mais do que posso dizer. Bem... (reflete muito antes de dizer) Eu me alimento do homem. Como o homem, compreende? Meu estômago se delicia e depois se dobra de dor. O homem não me cai bem ao estômago. O homem vira história no esôfago, vira bosta no caminho. Vira tanto pra se contar, que ao engolir o homem eu me alimento de excessos. Entretanto, a fome é maior que a prudência. A água inunda a boca cada vez que olho para um novo ser à minha frente. O sabor doce incentiva a memória faminta e não consigo abandonar a carne fresca, tenra, pronta para ser devorada. (parece que vai sair de cena, mas volta depressa) Ah! Desejo me apresentar, Verdugo é meu nome. Eu posso ler o seu pensamento: que lugar é este? Verdugo está falando sobre quê? O lugar...
Um canto qualquer dos miolos humanos. E Verdugo está falando da perdição do homem. O temor do não saber. A grandiosidade efêmera da história da criatura. (Tempo) Tudo bem? Este é o momento de se levantar e ir embora se quiser. Temos ainda mais três figuras para serem apresentadas. Clero, o pálido e lento homem. Gota, aquele trapo melancólico e de uma chatice imperdoável. Súcia, a enganadora, de uma retórica interminável. Se você não suporta sombras e desconhece a morte, vá embora, vá embora antes da dominação. Alerto, ainda o fato de não controlar a fome! A minha fome.
CLERO
Era uma vez um sofredor. Ele ia à direção do cofre. No cofre está guardado o regulamento final para a felicidade. Encontrou, antes de chegar, um menino dizendo para dar-lhe leite. O sofredor deu leite para o menino. Todavia o menino sorriu como um demônio. O sofredor sofrendo continuou para o cofre do regulamento. Mas achou um pergaminho, no pergaminho o desenho de um mapa e o mapa indicava o passado. Ele preferiu o passado e retornou. Todas as desgraças voltaram para sua vida. Todas. Até a de ter perdido o caminho de volta, para o passado e para frente. Então, ele busca até agora na cabeça, a estrada para o cofre. E roda roda roda pelo planeta, sofrendo. (tempo, agoniza). Sim, vocês adivinham bem, o sofredor sou eu. (sorrindo) Vocês gostam de ver um sofredor como eu, não é? Espelho medonho, não é? Pois eu vou dizer: a morte nunca me pegará. Pode escrever em todas as páginas que ainda restam no mundo, a morte não me pega. E você, (aponta Verdugo) não vai conseguir contar a minha história dentro de sua barriga.
GOTA
Não subestime o Verdugo, Clero. Basta me olhar e você terá a pergunta e a resposta simultâneas. Dizia eu, que a morte não era pra mim. E agora? Visito as vísceras dela, sem saída, sem.
CLERO
O exemplo fará de mim um vencedor, Gota. A observação é fantástica para os homens de tutano. Eu te vejo como não quero e não vou ser.
SÚCIA
Desiste, Verdugo?
VERDUGO (IRÔNICO)
Tudo é uma questão de tempo, mulher. Eu fui soprado antes de Adão, antes até do próprio Criador e, permaneço até hoje. Não há força resistente que eu não sucumba.
SÚCIA
Sei eu disso! Tu és o acólito dos anjos. Desses que os seres temem desde o berço. Tu nos levaste a todos, sempre. A canalha e os justos. O mal que nos fazem é tornar-nos esquecidos do que fomos antes de sermos agora. Como se divertem conosco! Não há ponto final para as artimanhas celestes, Verdugo. Eu, quando fui queimada acreditava piamente nas feiticeiras. E não tinha poder nenhum. Nenhum, entende? (Distante e quase sorridente) Ao contrário do que possa parecer, eu iria ao estômago com prazer. É de mim brindar a morte passando pelo esôfago de um bom comedor de corpos. É lá o caminho de todos os expurgos: da matéria e do espírito. (volta a fixar o Verdugo) Mas eu ficaria mais feliz se pudesse recordar de todas as vidas. Pra ver, sabe, se realmente valeu a pena.
VERDUGO (sem importar-se com a fala de Súcia)
Não sabe o quanto é divertido sentar-se ao lado do maquinador decidindo quais serão as cobaias da época. (rindo) vamos até o armário das almas, escolhemos a mais medrosa e mandamos para um novo corpo: esta chegará à capacidade máxima de dedução política e no momento que ela estiver plena para a vitória terrena, nós a tiramos de circulação. E o mundo fica sem resposta. Os infelizes lá embaixo sobrevivem de deduções. Eles desconhecem tudo mesmo quando se consideram sabedores.
OS QUATRO ATORES DEIXAM AS PERSONAGENS.
GOTA
Bem, todos já foram apresentados ao público. Clero, Verdugo, Súcia e Gota. Vamos para a cena dois.
CENA 2 – MORTALHA
OS ATORES RECEBEM UM JATO DE FUMAÇA MUITO FORTE.
CLERO
Gota venha cá. Venha cá, depressa. (olhando por um vão entre os fios)
VERDUGO E SÚCIA ESTÃO TRABALHANDO NUM CALDEIRÃO SOBRE FOGO.
GOTA (indo à Clero)
O que é? Por que chama por Gota.
CLERO
Para que observe outras gotas. Ali, sob a montanha, pingos uniformes brotam da crosta. Por que as gotas obedecem a distâncias tão cronométricas?
GOTA
Clero do céu... Há indagações sem respostas. Se não fosse assim, eu estaria pingando como elas.
CLERO
Acho que cada gota bebida pela terra é uma alma perdida.
GOTA
Há mais gotas que almas.
CLERO
Não pode ser. As gotas evaporam e retornam, sempre.
GOTA
As almas também.
CLERO
Você conhece o mistério contido nestas quest...
GOTA
Todo mundo conhece tudo sobre tudo, Clero. Os mistérios não são privilégios clericais... Sem trocadilhos, compreende?
CLERO
Eu não sou um clero representante do clero propriamente dito. O meu clero vem da paixão de meus pais pela religião. É só um nome, não a reprodução teológica.
GOTA
Então abandone o costume de observar as coisas que não compreende. É inútil quebrar a cabeça tentando entender muito. Enlouquece. Os mistérios, se é que eles existem, pertencem a um único instante, a uma única existência.
CLERO
Que?
GOTA
Satisfaça-se com o que tem agora pra viver. Quando você estiver habitando uma gota entenderá o ciclo de uma gota.
CLERO
Ah, sim! Enquanto habitador de um Clero preciso interessar-me apenas pelo Clero?
GOTA
Mais ou menos, mais ou menos... (aponta para fora) A montanha é a mortalha das gotas. (respira profundamente, melancólica) As sirenes soarão estridentes quando for a hora de deixar de ser Clero para ser Gota... (mais baixo) ou Verdugo (mais baixo ainda) ou homem, novamente.
CLERO
Ouço, desde muito tempo, falarem da importância de conhecer, conhecer profundamente o que se é para reconhecer o resto das coisas. É a primeira vez que alguém me diz pra esquecer o tudo e ficar sozinho entre eu e eu mesmo.
GOTA
Talvez seja melhor e... Mais fácil.
CLERO
Não foi essa a cobrança ao longo dos anos. A cobrança foi: amarre os sapatos, penteie os cabelos, estude para tornar-se um filosofo de si, da pátria e da escória. Vigie as armadilhas, trepar é pecado, mas trepar é bom e essencial. Sodomia é crime porque a bíblia não permite que eu sinta prazer pelo...
GOTA
É a gota d´água!
CLERO
Mais fácil você diz? Aferrolhar a mente para abrir as portas do conhecimento é neutralizar a razão? Subverter é ilegal previsto a partir de quais regras?
GOTA
Você investiga demais.
CLERO
É por isso que estou aqui? Eu quis estar? As sombras nunca foram meu maior objetivo, Gota. Se segui pelos caminhos apontados era porque eu buscava luz. E o que encontrei? Sombra pra mim e para todos que eu considerava magníficos. Todos. Nenhum deles, falo dos que escreveram e cogitaram sobre caber-se dentro do mundo, tiveram a morte sob estacas da escuridão, fosse ela consciente ou submersa em gosma e dor.
GOTA
Quando chegamos neste ponto sempre é bom cantar.
CLERO
Cantar o que? Todas as canções fazem perguntas.
GOTA
Mas não pense nelas enquanto palavras, não. Pense enquanto notas musicais...
CLERO
Você prefere a mentira consciente para enganar a verdade que procura?
GOTA
Eu prefiro o peso das roupas... Prefiro minha melancolia a ter que questionar mais uma vez.
CLERO
Você não está aqui porque tem medo da morte. Você é uma das provas que preciso cumprir.
GOTA
Se não quer morrer, Clero, mate antes a morte! (afasta-se)
CLERO
Uma gota morre num oceano. Mas uma gota apenas, não salvaria a vida de um homem com sede. (Tempo. Sai da personagem. Como ator:) pronto. Vamos dar por terminada a segunda cena. Esqueça tudo o que ensinaram a você: que você é burro porque não está preparado para entender um espetáculo como esse. Eles mentiram pra você. Eu garanto, mais que isso, eu sei que a sua essência está voltando pro seu coração. Não há como negar está em seus olhos. Vejo daqui, apesar do escuro. E para provar que aqui ninguém é melhor do que ninguém, vamos pular as cenas 3 e 4 e vãos direto pra cena 5. Este é o momento de você se ajeitar na cadeira, descontrair, entender que somos amigos e não vamos colocar você numa situação perigosa qualquer. A interatividade é só essa: eu falo com você, você digere... Ninguém vai apontar aí pro publico e perguntar alguma coisa. A não ser... A não ser que alguém queira se manifestar. (tempo) Cena 5.
CENA 5 – A MENTIRA
SÚCIA (PARA DE MEXER O CALDEIRÃO)
Verdugo... Não gosto do reflexo nessa mistura. É esverdeada e forma côdeas acobreadas nas bordas da caldeira. É um sinistro penhor, antevejo reações na fila dos mortos. Creia, Verdugo, o mistério entre o céu e a terra está com os dias contados.
VERDUGO
O que você vê eu não vejo.
SÙCIA
Cale-se! Nunca interrompa uma visão de Súcia. (OS SONS DE FORA AUMENTAM DE VOLUME POR UNS SEGUNDOS) vós, tendo poderes ilimitados não os compareis aos meus, que são mais graves e categóricos. Fui atacada certa vez por uma faísca retilínea, cegou-me os olhos por duas gerações, mas os poderes que se agregaram a essa visão no escuro atualmente provêm mais nitidez ao que enxergo. Portanto, vândalo comedor de homens, não veja o mesmo que eu, tu te resignes com a minoridade... Neste aspecto, claro.
VERDUGO
Se você falasse o suficiente, desperdiçaria menos tempo.
SÚCIA
Creia em mim, sua formula está incompleta. Basta reparar nas bolas ferventes, esse matiz não corresponde ao ser primoroso que busca criar com a poção.
VERDUGO
Impossível Súcia! Tenho o manuscrito do mantenedor aqui comigo, todos os ingredientes estão cozinhando...
SÚCIA
Lamento, Verdugo, pressinto a ausência de uma substância. Tu mentes. Há uma matéria-prima a ser inserida, não me engano.
VERDUGO
Parece que sua agudeza vai além da minha.
SÚCIA
Quanto a isso, garanto. Se me escondes algo não devo mais me conservar tua assistente.
VERDUGO
Fale baixo. O ingrediente final é um dos vivos que chegam para o meu almoço.
SÚCIA
Compreendo... (Afasta-se um pouco)
VERDUGO (rindo)
Oh, não, Súcia! Você seria indigesta demais.
SÚCIA
Como? Tu irás misturar um vivo ao xarope fervente ou comê-lo?
VERDUGO
De certa forma as duas opções. É preciso devorar o material, permitir que ele apodreça e seja regurgitado à poção, depois.
SÚCIA
E qual deles servirá? Clero ou Gota?
VERDUGO
(sorrindo) Os questionadores me interessam muito, Súcia. Eles não têm bastante consciência a propósito do que procuram, mas no final são verdadeiros mártires, julgados pelo egoísmo centrado nos próprios bagos e de peito aberto para a consumação existencial. É ele a matéria-prima que falta aqui.
CLERO (DE REPENTE)
Apague o fogo, Satãs. Estão carbonizando a atmosfera.
VERDUGO
(Horrível parte para cima de Clero) Eu quero que o mundo esturrique em chamas, que o ar se contamine, que as geleiras derretam sobre a humanidade, que as chuvas afoguem os filhos da puta que foderam com o planeta, eu quero que você, os sábios, os políticos, os mentirosos, as mães, todos vocês, que se abalaram num conceito sobre Deus, sejam exterminados e fracassem, fracassem, fracassem... (aponta o caldeirão) Eu estou criando o novo morador da Terra.
SÚCIA
(trepando nas costas de Verdugo) Tu não terás importância sozinho, eu sou tua Eva neste paraíso, medíocre canibal, é de minha costela mental que retiras a consciência de uma nova criatura...
VERDUGO
Solta, deixa-me, deixa-me, áspide, cobra de Deus deslembrado!
SÚCIA
Dá-me méritos, dá-me méritos e salto de teu corpo...
VERDUGO
Sim, sim... Você é peça fundamental para o novo homem. (Tempo. Súcia liberta Verdugo, mas ficam cansados, fixados em seus olhares)
GOTA (GARGALHANDO)
O homem à imagem e semelhança dos carcarás.
SÚCIA (desvia o olhar para Gota, que é arrebatada para o chão)
Tu és um neurônio gangrenado desta máquina, mulher. Não pretendas rir do bem ou do mau, porque as razões são precedências de quem as conhecem profundamente. E tu, Gota, és o estúpido potencial do ignorado.
VERDUGO
Estamos em guerra?
SÚCIA
Estamos! Tu declaraste a guerra formal.
CLERO
Estou de frente para o de sempre: as relações entre seres da mesma espécie. Orgulho e impaciência. Por que nos tornamos tão cruéis? Oh, raça...
VERDUGO
Entre o amor e o ódio, há um instante para revelações. É quando se instituem as causas.
SÚCIA
Entre uma revelação e outra, nós nos amamos e odiamos. É o remate para os efeitos.
CLERO (perto do caldeirão)
É a mim que vão atirar cá dentro?
VERDUGO (olhando para Súcia e depois para o publico)
Você gostaria?
CLERO
Estou de peito aberto para a entrega. Ficarei honrado e feliz quando pôr fim a esta etapa.
SÚCIA
Isso não é bom, Verdugo. Ele deveria se debater, injuriar contra a morte... Dessa maneira ele estará envenenando a poção.
VERDUGO
Está blefando. Na primeira cena ele disse que a morte não o levaria. Ele blefa. É a mentira escrachada...
SÚCIA
Coma-o já... Avance sobre ele e descubra se ainda tem medo. Aja, sem cautela, Verdugo. Eu quero vê-lo na mordida mais heróica de toda sua biografia. Ao cravar as mandíbulas naquela carne não haverá volta, estaremos entalhando o novo homem e seremos deuses... Deuses!
GOTA (fora da personagem)
Pronto, pronto, pronto... É o suficiente por enquanto. Já entendemos que as vísceras lutam pelo restabelecimento por um mundo organizado. E quem não luta, não é mesmo? Perdoem-me os que vivem, apenas, e não têm a finalidade de distinguir os enigmas... ou que já são cobras no assunto, mas nós, aqui no palco, somos instrumentos da idéia proposta por meio de um texto. Essa coisa de autoconhecimento, caça interior, provocação, motivação, é uma coisa fascinante. Dá um prazer, a gente goza gostoso, viu? Porque a grande diferença entre quem assiste e o que dá a cara pra bater em cima do tablado é a diversidade e intensidade do deleite. Vocês gozam porque entendem a mensagem, mas a gente!!! A gente goza por entender a mensagem, por estudar a fundo o tema, e ainda podemos nos dar o luxo de interpretar distanciadamente entre o ser ator e o ser personagem a temática oferecida pela dramaturgia, e não é só isso, cacete! Tem figurino, cenário, musica, luz e cachê. Mas antes que isso se torne mais um solilóquio vulvário, vamos concluir a peça. Agora que fizemos a cena 5 e revendo alguns pontos, acho que não foi uma legal pular a cena 4, ela tem a sua importância. Então iremos para a 4 e depois, imediatamente, corremos a cena 6 e a cena final, ok?
CENA 4– TOMAR PARTIDO
CLERO (COMO AO FINAL DA CENA 2)
Matar a morte, ela diz? (anda pela cena, em silêncio, encarando os olhos dos outros) seria mais fácil. Muito mais. Se de repente eu desafiasse essa morte ridícula e precipitasse a minha ida para lá. Claro, não há quem vença o varapau quando ela decide fincar. Seria conveniente, não é mesmo? Um de vocês, pelo menos, estaria livre do julgamento sobre a minha morte. Mas eu não vou dar o gostinho de ser idiota. Se é esse o jogo, vou mexer as pedras por todas as casas e linhas que me for possível. Não adianta virem com essa conversinha. Cilada!
SÚCIA
Bla, bla, bla... cojecturar.
GOTA
Deixe o menino em paz, Súcia. Se querem alguém para sacrifícios põe-me na lista. Eu não tenho nada a perder, mas ele ainda é um combatente tentando encontrar algum sentido para todas essas manobras ocultas.
SÚCIA
Hum! Tu falas como se tivéssemos escondendo alguma coisa... Como esconder se nem nós sabemos do que se trata, não é mesmo?
GOTA
Não acho graça na sua piada, Súcia. Você e esse elemento aí estão tramando, parecem ligados a entidades santas, falam como se fossemos obrigados a descobrir um enigma, mas na verdade eu sei que são dominados por espíritos do abismo.
SÚCIA
Escuta essa, Verdugo, a Gota nos incrimina quando apenas nos esforçamos para dar aos mortais a candura de uma ininterrupção além da carne. (muito perto dela) Não me enfrente... Não me trate como uma igual. Tu desconheces a verdade.
GOTA
Qual é a verdade?
SUCIA (passando do ódio para a perturbação)
Eu ainda não sei.
GOTA
Então que estaria conjeturando entre nós duas?
SUCIA
Não penses que és mais esperta, posso enganá-la e seduzi-la ao meu bel prazer.
GOTA
Ah! Você se desconcertou, pretende reencontrar o fio da meada, mas está perdida e com medo de que eu seja mais esperta. Tome algum partido, mulher. Quando não somos direcionados para o que acreditamos, somos boçais, vitimas de um labirinto sem saída.
VERDUGO
Tentem falar mais baixo. O Senhor quer descansar. (Uma sombra passa pelo fundo da cena, atrás das teias)
GOTA
Lá vai o incógnito.
VERDUGO
Cala a boca, maldita! Não profane a identidade do meu Senhor!
CLERO
Eu não suporto mais... Falem de um jeito que eu possa compreender. O que há conosco? O que há com este lugar apavorante? Não pode haver descanso mortal sem sabedoria. É esse terror de uma morte sem entendimento que me cega a inteligência, do que há que ser limpo e concluído.
SÚCIA (COSPE PARA O LADO)
Se tens pavor é porque tua mente é perigosa e deves respostas ao mundo. Queres a nossa piedade e retrucas as ordens superiores. (SEGREDA) Seres humanos são bombas feitas para explodirem no pecado, na dor, na tentação de se perceberem. E explodem. Sempre! Pois que optam pelo vazio das respostas. (RINDO) quando chegam perto de um ponto final, eles colocam virgula.
VERDUGO (RI)
Nunca estão satisfeitos com uma frase apenas, não é Súcia?
GOTA
Pobre Clero! Fique quieto. Eles não solucionarão seus questionamentos, menino. Portanto, vá para seu canto e espere as conseqüências.
TODOS SE ENTREOLHAM E VÃO, LENTAMENTE, PARA UM LUGAR QUALQUER NO CENÁRIO, ENSIMESMADOS.
CLERO (sozinho)
Num minuto qualquer alguém romperá a cortina de fios, tenho certeza. E me falará: bem, Clero, se já tem sua resposta para a vida é melhor que venha para a morte. Mas eu sei que não estarei pronto, nunca soube de um só ser que estivesse. Morrer deveria ser um segredo entre quem parte e o condutor.
VERDUGO (sozinho)
O Clero pensa. Ele me vê de um jeito torto. Quando me olha me faz dizer o que não sinto. É como se eu mentisse e devesse sustentar a mentira fosse qual fosse. E é assim que me sinto, mentindo, enganando a todos, a mim, como um advogado ardiloso que vence a causa, no entanto não pode dormir. (EM PRECE) Senhor?! Liberta-me da função maniqueísta e imprópria.
GOTA (sozinha, mexendo na geléia do chão)
O Verdugo... Deus ou Diabo? Tenho que seguir meus instintos. As alternativas promovem em mim uma sensação pouco relaxante. Como vim parar aqui? Devem estar me olhando agora, achando que vão ler o me pensamento, descobrir a Gota através da feição exposta. A cautela é amiga do desempenho adequado. Uma gota, uma gota... mais uma gota... (olha para a frente) o mar!
SÚCIA (sozinha)
Será ela o freio para minhas ações? Essa Gota fantasmagórica, pingando buliçosa sobre meu estômago ácido? É mesmo o Verdugo que devo fazer parar? Por que me enganam? Por que me dão rugas dentro de mim e entorpecem meus intentos? Mas quais são os meus intentos? Estou no caminho certo? Gota me vence o físico, a ética... Verdugo impulsiona a feiticeira esquecida... Clero...! Clero. Esse me parece a extinção desenhada em manteiga sob o sol, a menos que eu sopre o frio sobre ele, tudo se dissipará para o alto... Vapor... Nada!
OS QUATRO (OLHAM-SE AO MESMO TEMPO)
Quem são vocês?
MÚSICA FORTE. FICAM ESTÁTICOS POR UM TEMPO, MANTENDO O OLHAR SOBRE OS OUTROS. MAS DO NADA COMEÇAM A DANÇAR, UMA COREOGRAFIA FANTÁSTICA, ENEBRIANTE.
DE REPENTE OS ATORES SE ABRAÇAM, COMO SE FOSSE O FIM DO ESPETÁCULO. CUMPRMENTAM-SE, SORRIEM.
SÚCIA VAI À FRENTE E PEDE PARA O TECNICO PARAR A MÚSICA.
SÚCIA
Está tudo bem, meu querido. Obrigada. (ao público) resolvemos passar batido pela cena 3, era uma cena longa, cansativa, falando sobre... A gente continua daqui.
GOTA
Sua doida, eu avisei que iríamos direto pra cena 6 depois da 4, meu bem. Não precisa justificar que o público não é idiota.
SÚCIA
Calma, eu tinha esquecido... A gente continua daqui.
A LUZ RESPONDE PARA A PRÓXIMA CENA.
CENA 6 – A UNIDADE.
VERDUGO
Está blefando. Na primeira cena ele disse que a morte não o levaria. Ele blefa. É a mentira escrachada...
SÚCIA
Coma-o já... Avance sobre ele e descubra se ainda tem medo. Aja, sem cautela, Verdugo. Eu quero vê-lo na mordida mais heróica de toda sua biografia. Ao cravar as mandíbulas naquela carne não haverá volta, estaremos entalhando o novo homem e seremos deuses... Deuses!
VERDUGO
Não! Eu nem sei se é isso que meu Senhor deseja, Súcia.
SUCIA
Ah! Então tu tens um Senhor?
VERDUGO
Você não?
SÚCIA
Eu?
GOTA
Não disse? Ignoram os porquês tanto quanto eu. Eu sabia, é ele o desgraçado que nos colocou aqui (aponta Clero). Suas perguntas sempre me remeteram a dogmas infundados.
VERDUGO
Não pode ser. Meu Deus não me colocaria numa situação de desvantagem.
SÚCIA
Qual desvantagem, Verdugo? Estamos juntos para aniquilar o impostor.
VERDUGO
Eu não me alimentaria de meu semelhante.
SÚCIA
O Clero não pensaria duas vezes pra nos devorar, seu imbecil. É ele que nos atormenta, que nos põe no lugar do erro, da insatisfação...
GOTA
Não lutem entre si porque a verdade é filha da paz.
SÚCIA
Que paz, que paz? Não há paz na morte analfabeta, criatura. Tu te apegas no ingênuo para nos impacientar.
VERDUGO
Basta de indisposição entre nós. (indo a Clero) Qual é sua sistema de idéias a respeito...
CLERO
A ideologia é para solitários que não estão amarrados e não são atrelados a nada nem ninguém. Fique aí, longe de mim. Você e elas.
GOTA
Perceberam? Era esta a sensação que eu tinha, a sensação de estar vivendo sob o jugo de um ditador. Obediência sempre aos que questionam e nos põem duvidas. Esses são os manipuladores...
SÚCIA
A ditadura não tem mais corpo. Agora é uma alma sobrevivente, silenciosa, sombria, habitando o pensamento.
VERDUGO
O que você quer, Clero?
CLERO
O que eu quero? (tempo) Não me sentir tirânico. Eu queria poder responder a você com a melhor palavra, mas ela ainda não foi inventada. Ao sofrer toda sorte de condicionamento o coração não resiste e endurece. Desde sempre experimento uma tortura cruel, sei que devo decidir se morro retornando para a lentidão do conhecimento ou se evito morrer antes de entender essas coisas: vida, morte, igreja, política, Cristo, Sófocles, homem, miséria, poder, gelo, fogo, disciplina, ideal, prece, razão, Marx, ocidente, oriente, esqueletos, deficiências, Buda, compra, venda, e... o silêncio desse medo, que apavora todo o universo e faz o homem o ser mais ridículo e casual que existe. Eu estou longe de conseguir me ver como uma partícula essencial e sei, eu tenho a certeza que sei que posso me encontrar, eu sei o caminho mas há alguma coisa que me impede de continuar. Não é possível que seja só isso. Deve ter uma explicação razoável, ponderada sobre... sobre... (DESABA. CLERO CHORA O PRANTO DE UMA DOR INEXPLICAVEL)
VERDUGO, SÚCIA E GOTA SAEM DA TEIA E DO CHÃO.
SÚCIA
Vem, Clero, vem de volta pra nós.
VERDUGO E GOTA BALBUCIAM UMA CANÇÃO.
CLERO RESPIRA FUNDO E CAMINHA. DERRUBA O CALDEIRÃO SOBRE A GELÉIA. SAE DA AREA DE REPRESENTAÇÃO. UM EM CADA PONTA DO EMARANHADO ACIONA AS CORDAS PARA A SUBIDA DO CENÁRIO. TUDO SOBE E FICA PENDURADO SOBRE AS CABEÇAS DOS PERSOANGENS, COMO UMA GRANDE GOTA.
GOTA (FORA DA PERSONAGEM)
Chegou a hora da reflexão. Vocês nem precisam abandonar o teatro agora. Ainda temos uma meia hora antes de fechar as portas e irmos pra casa. Fiquem à vontade.
VERDUGO
Não se esqueçam de recomendar o espetáculo ou pelo menos discutir sobre ele. É um assunto que não acaba nunca. Se por ventura qualquer pensamento tenha ficado obscuro, inexato, então tudo está certo.
SÙCIA
É isso aí. Não temos mais nada a dizer.
TODOS
Passem muito bem. (SAEM DE CENA)
Foco na Gota no ar.
FIM
Ademir Esteves, Fevereiro de 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário