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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

MIRA DE RATO OLHOS DE HOMERO - Ademir Esteves

MIRA DE RATO OLHOS DE HOMERO

EURICLÉIA
PENÉLOPE
O RATO

SOBRE A CADEIRA, EMPUNHANDO UMA VASSOURA,  PENÉLOPE PARECE AFLITA

CENA UM – O RATO

PENÉLOPE
Eu sei que você está aí. Talvez esteja apavorado, mas eu estou muito mais que você. Pode acreditar: não vou berrar, não vou fazer escândalos, prometo. Mas, por favor, dá sinal de vida. Uma hora que estou em cima dessa cadeira, meu filho. Olhe, a porta está aberta. Viu? É só você engatar a primeira e sair correndo. Logo a direita vai encontrar a lixeira. Salta pra dentro dela e num minuto tudo estará acabado. Você volta pra sua linda e aconchegante  casa e eu, posso descer daqui.  Não é tão difícil assim, fofinho. Mas é claro! A vassoura... veja eu to colocando a vassoura no chão. Era só no caso de me defender, se você quisesse investir na minha direção... Nem uma arma na minha mão. Pronto, pronto, pronto. Pode correr... vai. To me sentindo impotente, como os grandes líderes diante da consumação da existência de Deus. Ai, por quê eu, sendo tão grande de corpo tenho que estar frágil diante de?... como você é pequenino, coitado!É possível que seu coração esteja aos saltos. To parecendo o gigante do pé de feijão, não é? Tenho certeza que ainda está encaixado em algum canto desses. Sabe, não consigo manter contato com o que não posso encarar...  Eu fecho os olhos, veja. (Fecha) Um, dois, três. (ENTRA EURICLÈIA, SUSTO DAS DUAS) Euricléia!
EURICLÉIA
Penélope! O que é que ta fazendo aí em cima?
PENÉLOPE
Realiza a cena: decidi que vou me candidatar  à vereadora nas próximas eleições, escrevi um discurso, subi na cadeira e estou ensaiando, usando o cabo da vassoura como microfone. Cuidado, tem um rato enorme enfiado num dos cantos da casa.
EURICLÉIA
Decididamente você não está bem. Desça daí. Você pode ser muito melhor que isso, Penélope.
PENELOPE
Se você tivesse visto o monstro com certeza gritaria.
EURICLEIA
Um rato?
PENELOPE
Aí que tá! Não é pelo bichinho em si, mas pela olhada que ele me deu. Fixa, contundente, como se quisesse falar comigo. O que ele tinha pra dizer não era boa coisa, posso garantir e jurar de pés juntos que naqueles olhos iam mensagens diabólicas.
EURICLEIA
Anda lendo ficção demais. Já resolvo o problema em dois tempos... numa vassourada só!

PENELOPE
Trucidamento?
EURICLEIA
Essa é uma palavra que não se pode verbalizar aqui, mulher! Vamos apenas eliminar o que te assusta. Isso eu posso fazer. Tranqüilamente. (TEMPO LONGO) e depois é só um bicho nojento, transmissor de doenças. Não sei porque existem.
PENELOPE
Eu fico com dó.
EURICLEIA
Besta! Deve se decidir: tem pena ou medo.
PENELOPE
Não posso sentir as duas coisas?
EURICLEIA
Não.
PENELOPE
Nunca?
EURICLEIA
Talvez.
PENELOPE
Quando?
EURICLEIA
Quando puder sair daqui. Você quer?
PENELOPE
O que?
EURICLEIA
Sair? Quer? Você quer, Penélope? Mesmo com todos os ratos que estão lá fora? Mesmo com a pouca vida que se pode ter? quer? Quer voltar pro mundo dos coitados outra vez? Parar de sonhar? Quer? Aqui só temos um, um, um, um rato de verdade, inofensivo se permanecer distante, inadequado às cobranças de higienização,  mas um. Podemos dominar um. Aqui podemos tudo. Lá, no mundo dos infelizes,  não. Não temos forças pra derrubar milhões de roedores. Não temos. Não podemos. Quando relembro que eu por tentar, apenas tentar, tive um batalhão que segurou meus pulsos e tapou a minha boca... eu só queria que fizessem justiça. Não sabe o tamanho da nobreza que meu ideal tinha! Andava pelas ruas procurando gente que estava afastada de todas as boas condições: comida, cama, amor incondicional. Todas as vezes que olhei pra cara deles!!! Que cara. Que cara eles tinham. Amarelas, não como dos orientais que já nascem assim, amarelas de falta de vermelho. Você me entende, é tão sonhadora quanto eu.
PENELOPE
Meu pai dizia que era melhor tapar os olhos e seguir, sempre em frente. O que estivesse a direita, a esquerda, atrás não era culpa nossa. Ele dizia: tudo o que está além de você só vale a pena se te trouxer prestígio. Deixe que os incapazes entreguem nas mãos de seus deuses o peso de suas cruzes. Quando minha vagina irrompeu a sangrar, dias e noites, transformando meu corpo numa fina máscara, eu precisei olhar pra todos os lados e só vi coisas piores que a seiva consumida.
EURICLEIA
Você ainda acha que houve alguma mudança?
MUDANÇA DE LUZ. FOCO EM EURICLEÍA.

EURICLEIA
Eu devia estar com 12, 13 anos. Desejava ser uma sereia, quais as que viviam na mitologia. Seria bom emergir das águas e seduzir mais que um homem ou até mesmo um Deus. A imagem associada aos homens, vinha dominada por heróis armados, como se o poder de suas lanças fosse maior que todos os bons sentimentos. A primeira vez que conheci o poder dos meus dedos foi com a figura translúcida de um Ulisses, o Ulisses que eu perfazia lá por dentro de mim. Ele vinha num barco de pedras, deixando a ilha isolada em que Calipso o prendera, ela própria eu via, estendendo as mãos para meu homem, querendo que ele voltasse e ele não voltava. Vinha pra mim, pros meus dedos, dedos que cresciam infinitos por baixo, entendendo que Ulisses possuía dez, vinte, trinta condutores fálicos... eu ria dele, porque estava roubando o homem de sua casa, de sua deusa, dos seus fracassos. Eu gritava em seus ouvidos, agarrada aos seus cabelos: Ulisses, qual é a maior guerra, a da carne ou a do espírito? O que é que eu vou fazer depois de gozar no seu destino? Vou recolher minhas máscaras, grudá-las nos braços, na mente, no íntimo, na boca... amputar meu rabo de linda sereia e caminhar pela terra  salvando os desgraçados? A imagem associada aos Deuses, era um Posêidon que fazia pouco caso do homem. Ele me domava, porque era meu rei, meu Deus e morava acima e abaixo das águas, e me levava como mágica por sobre pedras viscosas, erguia minha cauda e estremecia fundo no meu desejo, como se vomitasse uma contra vontade: não me desrespeites, Euricléia, o homem não vale a pena, só os deuses são ininterruptos. Nesse minuto eu ouvia uma música indiana, um mantra reticente e interminável. Hammmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm! Quando Posêidon jorrava seus líquidos sob as escamas da minha cauda dourada, eu chorava. Sempre chorei, porque imaginava que além daquele prazer, havia as dores de todos os que não pude transformar.
OLHA PARA O LADO, EXATAMENTE PARA A VEIA DO BRAÇO ESQUERDO.
PENELOPE (ENTRA NO FOCO, ATRÁS)
Aplicaram uma dose tão grande dessa vez. Acho que você vai dormir. Você vai dormir, Euricléia. E vê se não sonha com sereias... heróis... deuses...  se sonhar, vai falar alto e eles voltam e furam sua veia de novo. Se você dormir tanto, ficarei sozinha. Então, terei que passar os dias em cima da cadeira. Posso suportar o rato... mas não os olhos dele.

A LUZ DESAPARECE LENTAMENTE.














CENA  DOIS  - A VOLTA DE ULISSES
EURICLÉIA (lendo em voz alta)
“levanta-te, querida! Levanta-te, Penélope! Vem ver com teus próprios olhos aquilo que pediste em tuas preces durante tanto tempo! O amo chegou, está em casa. Antes tarde do que nunca. E ele matou todos os ousados pretendentes que cometeram tantos ultrajes e devoraram tuas iguarias e perseguiram teu filho!”
PENELOPE (lendo em voz alta)
“Querida ama, os deuses te tornaram louca. Eles podem tornar tolo o mais sábio dos homens e podem levar o bom senso ao espírito mais fraco. Transtornaram-te, embora sejas geralmente muito sensata. Por que zombas de mim? Tenho tido tantas tribulações e vens contar-me essa historia absurda  e acordar-me no meio de um doce sono, quando meus pobres olhos estavam bem fechados...” (sem ler)  Bem fechados como os queria meu pai.
EURICLEIA (Lendo)
“não estou zombando, minha filha, é a verdade! O amo chegou, está em sua casa: é aquele forasteiro, aquele de que todos zombaram no salão. Telêmaco sabia que ele estava aqui, mas é prudente e escondeu os intuitos de seu pai. Punir os homens que se colocavam acima de sua posição, fazê-los pagar pelas violências cometidas, eis qual era seu intuito.”
PENELOPE (LENDO, ALEGRE)
“Dize-me, querida ama, dize-me a verdade, se ele realmente voltou, como dizes, como castigou sozinho aqueles homens desavergonhados, estando sozinho e sendo eles uma multidão, como sempre eram?.” (sem ler) Meu pai, que depois de anos, tornou-se um mundo inteiro, era a multidão inimiga...
EURICLEIA (LENDO)
“Nada vi e nada perguntei, apenas ouvi o barulho...” (Sem ler) acho que deveríamos nos concentrar nas personagens. O tempo de seu pai não volta mais, minha amiga. Não volta. Não temos mais recursos, senão deixar que o tempo passe.
PENELOPE (CONFIDENTE)
Tratam-nos como doidas, Euricléia. Se querem que paremos de sonhar, por quê não nos dão Romeu e Julieta? Se temos que interpretar para o público, mostrar a eles o quanto nos recuperamos, podíamos encenar qualquer coisa doce e sem nenhuma conseqüência.. Querem que sejamos outras, mas insistem em nos mostrar tudo o que somos.
EURICLEIA
Não estamos loucas, Penélope. Apenas escutamos os conselhos. Não podemos mudar o mundo se o mundo quer continuar inevitável.
PENELOPE (OLHA-A DURANTE MUITO TEMPO)
Você está perdendo o seu rosto. É como eles.
EURICLEIA (DE CABEÇA BAIXA)
Esse é o seu julgamento?
PENELOPE
Minha súplica. Para que eu não fique só e tenha que fazer morrer a minha crença, preciso mais que lembranças. Eu não sei o que é melhor: se esta Penélope interpretar a Penélope de Ulisses ou enfrentar o comando, exigindo que eu própria seja Ulisses, desbravando o caminho do meu retorno.
EURICLEIA
Você? Um Ulisses? Quais chances teria? Os inimigos de agora e de sempre, vestem túnicas de bons senhores, aliados do bem e do mal, tudo ao mesmo tempo, para confundir a razão. Se você confia-lhe um segredo ele o espalha aos sete ventos, em pouco tempo você é condenada e executada como inimiga da nação. Você pode subir no topo do mundo, esbravejar suas intenções, mas todos farão como seu pai – não olharão para os lados, para trás. Eu não tenho dúvidas que os bons senhores, como o batalhão que impregnou meus braços com suas patas de unhas afiadas, viriam em nome do progresso e te pregariam numa cruz de ferro, colando sua carne lá, como visão do inferno. O cala boca da minoria...
PENELOPE
Se deixarmos esses pensamentos criarem força, seremos como eles.
EURICLEIA
Já somos. (alto) já somos!
PENELOPE
Contenha-se, por favor! (Imediatamente volta ler) “Ulisses estava comovido e as lágrimas corriam por suas faces, tomou Penélope nos braços... a Aurora ia surgir sobre suas lágrimas de alegria, mas Atenéia lembrou-se deles. Deteve o curso da noite e tornou-a mais longa...”
EURICLEIA (DISTANTE)
Estão colocando outros ideais dentro de mim.
PENELOPE (MAIS ALTO)
“Ulisses retrucou: Ele me disse para visitar cidade após cidade, levando um remo, até encontrar um povo que não conhece o mar e nem usa o sal em seus alimentos, que nada sabe acerca de navios com seus cascos carmesins e os bem-feitos remos que são como as asas de um navio. Quando alguém me encontrar na estrada e me disser que tenho uma pá de joeirar no ombro, deverei fincar o remo no chão, depois sacrificar ao Senhor Posêidon, na forma devida, um touro, um carneiro e um porco, e depois, regressando à pátria, deverei preparar um sacrifício solene dedicado a todos os deuses que governam o vasto céu. Viverei com meu povo feliz em torno de mim, até me curvar sob o peso de uma velhice tranqüila, e a morte vier gentilmente me tomar, vinda do mar. Eis o que acontecerá...”
EURICLEIA
Eu não sou assim. (rasga pedaços de suas roupas) eu sou o que está por baixo dessa fantasia, Penélope. Pode ver? Você me vê inteira?
PENELOPE
Claro, claro... eu sei exatamente o que seu pensamento esconde.
EURICLEIA
Até que, também eu, poderia fazer qualquer coisa pra encontrar a erva daninha e esmagá-la duramente para que secasse e não devastasse o homem?
PENELOPE
Claro, claro... se me dessem liberdade e tempo, eu escolheria um homem e uma mulher virtuosos,
EURICELIA
um pedaço de terra cercado por mar e rios, uma pequena floresta inatingida,
PENELOPE
 um casal de cada animal, cobriria tudo numa redoma transparente
EURICLEIA
Olharia para o céu e clamaria:
PENELOPE
Alguém aí em cima
EURICLEIA
Já preparei o paraíso



PENELOPE
Já protegi o recomeço
EURICLEIA
Agora cuspa todo o ácido que puder lançar da boca
PENELOPE
E acabe de uma vez por todas com nosso erro.
EURICLEIA
Mas não corra o risco de enviar mais anjos
PENELOPE
Porque os anjos precisam de sossego (TEMPO)
EURICLEIA (FECHA OS BRAÇOS EM TORNO DE SI)
Se eu ficar nua, vou estar aceitando o efeito. É um martírio sobre humano, encontrar o momento exato em que todas as pequenas células se uniram e me arremessaram de quatro no centro do universo. Agora eu sei o que leva um homem a morte. Não é seu pecado. É a herança de todas as suas seqüelas.
PENELOPE (LENDO)
            “Ulisses, suspende teu braço, põe fim à contenda. Ulisses obedeceu, de todo o coração, alegremente. Depois disso, Palas Atenéia, filha de Zeus Onipotente, com a aparência e voz de Mentor, fez a paz entre homens e deuses e terminou a luta para sempre.”
AS DUAS FICAM UM TEMPO OLHANDO O INFINITO. CHORAM. VAGAROSAMENTE EURICLÉIA CAMINHA OS OLHOS NA EXTENSÃO DO PROCENIO.
EURICLEIA (DISTANTE E CALMA)
Penélope, o rato.         Blecaute
CENA TRÊS – A CHEGADA
PENELOPE (ENTRANDO)
Penélope, e o seu? (T) Ah! Euricléia, como a velha ama da Odisséia. (T) Não sei. Devo ter vindo com minhas próprias pernas. Atravessei um quintal escuro antes de encontrar esta porta. Por qual motivo você veio? (T) Eu também. (mostra os pulsos) Mesmo sem correntes, me sinto atada. Tenho um nó na garganta. Uma dor no peito. Olhos secos. Testa em febre. Posso ficar aqui? (T) Sim, acho melhor estar com alguém, mesmo que a solidão continue resistindo. (T) Eu gosto de cantar. (T) Eu só gosto, não disse que cantava. (T) Por que me olha desse jeito?
EURICLEIA (APARECE DETRÁS DE UM PANO PRETO)
Como se chama? (T) Euricléia... (T) quem trouxe você pra cá? (T) Fui detida por minha consciência... (T) Fique, será bom ter com quem conversar. (T) em alguns momentos poderemos cantar velhas canções agitadoras. Você tem uma voz bonita? (T) é o meu jeito. Acostumei-me a olhar os outros pensando: será honesto, será mais um? Não trouxe com você nenhuma troca de roupa?
PENELOPE
Não. Acho que vou usar estas até que apodreçam. No fim, ou fico pelada, resistindo ao frio quando chegar o inverno ou morro antes, quem sabe?!
EURICLEIA
A pena para quem pensa hoje em dia, é a eternidade. Era melhor quando nos torturavam até a morte. Usavam armas. Estupravam a gente com infindáveis e surpreendentes objetos. A única tortura que

nos restou, Penélope, foi a filosofia. Nos dão a oportunidade de refletir incansavelmente. Enquanto pensamos se vale a pena, lá fora tudo permanece como quer a alienação.
PENELOPE
Estranha, você! Fala como se aqui fosse o final de tudo. Quero crer que me dei um descanso, enquanto preparo o próximo passo.
EURICLEIA
Tente resistir, então. Eu ainda estou cansada. Muito cansada, sabe? Tinha o mesmo objetivo quando me retirei ou quando deixei que me tirassem de circulação: restaurar as energias. Cheguei à conclusão de que não passo de mais uma excluída. Muito se pensa, pouco se pratica. É assim comigo, será com você... Agir, significa falta de ação, porque no contexto eu não valho merda nenhuma.
PENELOPE
Você está confusa. Garanto que é mais simples que isso.
EURICLEIA
Garante? Que entendimento é esse? Se estivesse certa, não estaria aqui dando um tempo pro seu descanso. Deixa de se enganar, mulher. O buraco é mais em baixo.
PENELOPE
Tá’ me chamando de ignorante?
EURICLEIA
Em lugar dessa defesa, por quê não se pergunta: sou inocente? Conheço todas as tentativas que a história registrou? Sábios e mentecaptos foram mais felizes que nós. Não temos a metade do conhecimento que eles tinham. E agora estão distantes, como tentar pegar o sol com as mãos. Sabe quê mais? Cada vez será pior. Imagine-se no meio da circulo: de um lado um menino, careca, barriga de verme, olhos rancorosos e vagos com o dedo na boca,  do outro um menino cercado de brinquedos eletrônicos, lanches inacreditavelmente recheados, cabelos lisos, quase sorridente – você: na mão do lado do menino careca oferece um enorme pedaço de pão, ele lança o olhar faminto sobre sua mão e não identifica sua intenção, foge, desesperado – na outra mão, do lado do menino de cabelos lisos você tem uma balança que pesa a igualdade, o menino olha sua mão e não enxerga a justaposição de sua crença e grita: Socorro, tragam uma televisão!!!
PENELOPE (PARA O PÚBLICO)
            Euricléia tinha uma certa razão, por isso passou os dias e as noites de uma semana inteira discursando sobre seus sonhos. Penélope a ouvia, encantada, como se tivesse chegado  exatamente no lugar que estivera procurando desde sempre. As duas se sentiam aplacadas de um temor incontrolável. Era à busca da decisão. Ficar ou retornar para o desprezo das classes. E que classes eram aquelas!? Vocês bem podem adivinhar. Todas e nenhuma. Porque dentro de todas havia vertentes. Ficava difícil unificar. Como vocês aprenderam, os homens só são iguais na distribuição bíblica ou quando morrem. Isso, obviamente é muito parecido com o  bem e o mau, o que nos leva a seguinte reflexão: as vertentes são necessárias... alguns acreditam de que nada valem diante da morte. E há os que acreditam que não há morte. Isso me leva a crer, que a discussão é ininterrupta: se a morte determina que nada vale a pena, porque não nos matamos quando começamos a pensar? Mas se pudermos ir além dela, então deve valer a pena tentar ficar de pé no centro da roda e, ainda assim, conhecer o menino careca e o menino de cabelos lisos. (TEMPO) Ou não.




CENA QUATRO – ESPECTRO
MÚSICA. PENELOPE E EURICLEIA SURGEM CANTANDO
DADIVOSA ERA MOÇA PREGUIÇOSA
POR NÃO COZINHAR TINHA DENTES DE PASTEIS
E PELE COM MANCHAS DE MOLHO DE PIMENTA
ENTÃO UM DIA CONHECEU HENRIQUE, O BELO
QUE ERA CHEFE DE COZINHA
POR NÃO COZINHAR CASOU COM ELE
E FOI MORAR NO MORRO TAL
HENRIQUE, O BELO, FOI CONVIDADO PRA DAR RECEITA NA TV
E TEVE, COITADO, QUE FALAR DO PRODUTO FATURADO
COMPRE A LATA DE TEMPERO
COMPRE A LATA DE TEMPERO
COMPRE A LATA DE TEMPERO
COMPRE COMPRE COMPRE
NO DIA SEGUINTE DAVIDOSA FOI AO MERCADO
QUE FICAVA NO PÉ DO MORRO
E QUAL NÃO FOI SUA SURPRESA QUANDO NA GÔNDOLA FALTAVA
O TEMPERO DE HENRIQUE
O BELO DA LATA DE TEMPERO
CADÊ A LATA DE TEMPERO
CADÊ A LATA DE TEMPERO
CADÊ A LATA DE TEMPERO
CADÊ CADÊ CADÊ
DAVIDOSA VOLTOU PRA CASA, FRUSTRADA DADIVOSA
SENTOU NA CADEIRA MARROM COMBINANDO COM O TAPETE DE SISAL
LIGOU A TELEVISAO
E ELA QUERIA TANTO, QUERIA TANTO, QUERIA TANTO:
A SANDALINHA DA COISINHA
O CREME ANTI-RUGAS
O COMPLEXO VITAMINICO
AS ERVAS PRA EMAGRACER
O ABSORVENTE MINUSCULO
QUE NÃO IA PRECISAR PORQUE AÍ VINHA UM FILHO
QUE IA NECESSITAR
DE FRALDAS CHEIROSAS E SEQUINHAS
DE SABONETE ESPECIAL
ROUPINHAS DA MARCA TAL
POMADA PRAS ASSADURAS
E ELA, POR NÃO COZINHAR DEVIA TER QUE COMPRAR
LATINHAS DE PAPINHAS
LATINHAS DE PAPINHAS
LATINHAS DE PAPINHAS
PAPINHAS PAPINHAS PAPINHAS
E A SEDENTÁRIA DADIVOSA
OLHANDO PRA TELA E PRA PORTA
MASTIGA OUTRO PASTEL ESPERANDO HENRIQUE, O BELO
VOLTAR PRO ALTO DO MORRO
ONDE FICAVA SUA CASA
QUE CASA QUE CASA QUE CASA
DIFERENTE DAS QUE MORAVAM
OS FELIZES HOMENS DA TERRA
DE MARTE, DE VENUS, DE MERCÚRIO
OS OLHOS DE DADIVOSA
NÃO VIAM ALÉM DO MURO
MAS SABIA PRAGUEJAR MUITO BEM SEU INFORTUNIO
É ASSIM QUE DEVE SER
A VIDA DE TODA A GENTE
COMO É LÁ NA TV
(POSE FINAL. AS DUAS OLHAM PRA FRENTE, COMO SE ESPERASSEM APLAUSOS)
PENELOPE
Não, não foi com essa canção que fomos escolhidas para o musical.
EURICLEIA
Nós tínhamos acabado o curso de teatro e estávamos procurando trabalho. Ninguém imagina, era uma batalha diária. A gente tinha a cabeça cheia de idéias, de que o teatro devia ser mais que tudo o que tava acontecendo por aí.
PENELOPE
Atores, entre aspas, famosos, produzindo coisas do tipo: Medeia Na Zona, Brecht Apolítico, A criada de Camões, Amor, eu te amo...
EURICLEIA
 Vamos todos procurar o ponto G...
PENELOPE
E olha que estão procurando até hoje, hen? Porque depois dessa montagem vieram: o Ponto G não se acha, O G é quase H, O ponto G de Maria Madalena... e o pior disso é que as casas estavam sempre lotadas.
EURICLEIA
Retomando o assunto: fizemos o teste para o musical, era o meio de sobreviver até que pudéssemos por em prática o que realmente necessitávamos fazer enquanto atrizes conscientes. Mas o diretor disse que esquecêssemos aquela palhaçada e tentássemos cantar alguma coisa interessante. Aí perguntamos pra ele o que? Ele respondeu: qualquer coisa...
PENELOPE
É. Me lembro que você me olhou quase desistindo. Então eu refresquei sua memória:  Querida, o aluguel. Virei pro pianista e pedi: lá menor, por favor. E cantamos:

 (CANTAM)
OI, GOSTOSO, VEM PRA MIM
VEM PRA MIM, GOSTOSO
EU SOU UMA GATA MANHOSA
E QUERO SER SUA, MEU GATO
MIAU, MIAU, GOSTOSO
VEM PRA MIM, MEU GOSTOSO
ÉS MEU PRINCIPE, TRAZ O CAVALO
E ME CHAMA DE SUA MULA
VAI, GOSTOSO, ME DOMINA
IH HÓ, IH HÓ, IH HÓ
ASSIM, NUM PINOTE ME FERES
MEU TRASEIRO É BEM MAIOR
VEM QUE EU TENHO O QUE TU QUERES
EURICLEIA
O cretino do diretor achou que tinha texto demais na canção, mas contratou a gente. E fomos tapar um buraco, lá no fundo do palco.
PENELOPE
Eu não vou mencionar o nome da atriz principal por ética.
EURICLEIA
Nem atriz era.
PENELOPE
É, não era. Quer dizer, era porque tinha DRT. Mas era filha de um dos patrocinadores, que tinha um amigo que era casado com o diretor de elenco, essas coisas que existem para que o teatro continue. O bom, que juntando o meu salário e o salário dela (aponta Euricléia) conseguíamos pagar metade do aluguel da kit que a gente dividia. Depois da sessão, eu trabalhava de arrumadeira num hotel da meia noite às sete.
EURICLEIA
E eu ia pra casa dormir, por que pegava às sete no lugar dela (aponta Penélope) no hotel. Saia as duas, voltava pra casa, e a gente continuava escrevendo a peça. Sempre com o propósito de resgatar para o teatro algo que nós não sabíamos bem o que era. É por isso que parecemos espectros, meus amigos. Olhem pras nossas expressões: cansadas, extremamente cansadas.
PENELOPE
Entretanto, cansaço pra gente não significa desânimo. Nem pode. Veja bem: tá certo que este não é um puta teatro, mas foi o que conseguimos pagar depois de economizar quatro ou cinco anos.
EURICLEIA
Seis.
PENELOPE
seis.

EURICLEIA (gira em torno de si, olhando o palco)
O nosso palco. Chegou a hora de saudar. Eu reverencio todo artista que consegue suplantar o dinheiro.
PENELOPE
Reverencio aqueles que sangraram e foram maltratados por ter dito: eu sou maior que as ditaduras. Sou implacável, porque meu grito tem a acústica do palco e se propaga além das portas.
EURICLEIA
Eu quero a canção que chora, a dor da humilhação, porque a lágrima não impediu massacres, mas renovou o homem; porque a humilhação não estancou a gargalhada do abominável, mas fez o humilhado conhecer o chão que lhe amparou os pés.
PENELOPE
Quero do palco a alma dos que me antecederam, pra eles todo meu respeito. Luz, mais luz para os que vieram antes de mim. Luz, muita luz neste recanto, pois o iluminado sabe que gente precisa de afeto, de conquista, de beijo, de sonhos... de transformação.

(CANÇÃO)
MEU HOMEM NÃO VAI PRA CAMA
PORQUE O HOMEM QUE EU PRECISO
É O QUE DORME ACORDADO
VIGIANDO O OUTRO HOMEM
PRA QUE ELE NÃO SEJA PEGO
DE NOVO NO ABANDONO
MEU HOMEM É DESIGUAL
PORQUE TEM IDEIAS NA CABEÇA
E ALENTO NO CORAÇÃO
NÃO É O ESPECTRO DA MORTE
PRA ELE A MORTE NÃO EXISTE NÃO
EXISTE PRO HOMEM QUE ESPERO
CAMINHO, VOZ E AÇÃO
CADÊ A LATA DE TEMPERO
CADÊ A LATINHA DE PAPINHA
CADÊ O TEATRO BRASILEIRO?
                       
MUTAÇÃO DE LUZ







CENA CINCO – O ESPETÁCULO
PENELOPE
Mas em quê esta Odisséia tem haver com a nossa?
EURICLEIA
Homero discute paixões, querida. Paixões humanas e divinas. Qual é a intenção da gente?
PENELOPE
Atingir o comportamento?
EURICLEIA
Comportamento e discernimento, não é isso? Quando escolhi os nomes das personagens, Penélope e Euricléia, eu estava pensando apenas nos nomes. Por achá-los atraentes, diferentes, mitológicos... só depois entendi, que a proximidade que as unia na Odisséia, também significava que as personagens do nosso espetáculo pudessem se unir num mesmo tema.
PENELOPE
Isso eu entendi. O que não compreendo é voltarmos a nos preocupar com a história do livro se a temática que optamos é a exclusão social.
EURICLEIA
Já te expliquei mais de uma vez: se, Ulisses foi tirado de circulação e depois de muito tempo exilado faz o caminho de volta, encontrando com amigos e inimigos para concretização de seu ideal...  enfim...
PENELOPE
Não acha confuso para  as pessoas? Quem não conhece a Odisséia...
EURICLEIA
Se não conhece e for alguém interessado não vai se negar a buscar meios de nos compreenderem, Penélope.
PENELOPE (rindo)
 Acho engraçado quando você me chama de Penélope... ainda não me acostumei com isso. Sinceramente? Às vezes dá um nó desse tamanho na minha cabeça.
EURICLEIA (PARA O PÚBLICO)
Pra vocês verem até onde chega o compromisso com a arte. Quando optei pelos nomes Penélope e Euricléia pros personagens da nossa peça, promoveu-se uma identificação tamanha que mudamos nossos nomes de batismo. Na verdade meu nome é Vera e o dela Giovana. Mudar os nomes é como recomeçar, entendem? Talvez seja uma maneira de obscurecer nosso passado de atrizes comerciais.
PENELOPE
Nenhuma  objeção de minha parte. As discussões, controvérsias, piadas, foram crescendo em torno da idéia central: a exclusão humana. É um tema amplo, bem sabemos, mas tínhamos que ficar atentas apenas a uma coisa de cada vez. Lá pelas tantas eu já possuía um calhamaço de informações, um caso puxa o outro e você quer inserir no espetáculo tudo de uma vez só.
EURICLEIA
Se não fosse a minha eloqüência estaríamos discutindo os problemas do mundo até agora. Mas, brilhantemente, como me é peculiar, decidi que deveríamos estabelecer um deles e tratá-lo profundamente até a exaustão. É o que vocês vão apreciar quando o espetáculo estrear daqui sete dias.
PENELOPE
Ui, dá um friozinho na barriga de pensar. Acompanhem o raciocínio: duas mulheres, Penélope e Euricléia, cabeças de movimentos importantes, como os de restaurar a dignidade de pessoas sofridas, são repentinamente afastadas do convívio social, duramente afastadas. E, por casualidade do destino, ficam trancadas no mesmo quarto do sanatório.
EURICLEIA
Sanatório. Pra onde vão todos os que são julgados por suas bravuras e não se deixam corromper...
PENELOPE
Lá, são obrigadas a participar do grupo de recuperação e reintegração. Devem participar de um exercício diário: repetir, incansavelmente, passagens de suas vidas pregressas, os monitores de saúde querem aproveitar a história dos pacientes e inseri-las num espetáculo de teatro. O espetáculo será assistido por médicos, pacientes, e as famílias.
EURICLEIA
Naturalmente, apesar de suas convicções, as duas gostariam de esquecer o passado. Repetirem a própria história era o pior castigo de suas vidas. Porque não lhes dava prazer perceber que a extraordinária beleza de seus ideais, também ali dentro era tratado como mero replay e que o fim: um palanque com dezenas de pares de olhos assistindo, depois aplaudindo e rapidamente retornando ao conforto de suas belas casas, tranqüilos, isentos, parciais, intocáveis, (Emociona-se, quase gritando) covardes !
PENELOPE
Calma, meu bem, calma! Por favor, entendam, que quando estamos concentradas num trabalho que tem tanta verdade pra ser dita, somos dominadas muitas vezes pelas personagens. É um ir e vir da pessoa que somos batendo de frente com a perso... (Perturbada) Desculpem nossa emoção. É tão grande o amor pelo o que fazemos! Quero tanto que vocês não saiam do teatro vazios.
EURICLEIA
Desse modo, capetinhas como são Penélope e Euricléia, não nós, aquelas, resolvem que criarão  um espetáculo dentro do espetáculo que devem, obrigatoriamente, ter que apresentar no pátio do hospício.
PENELOPE
Feitas do mesmo ideal, escrevem cenas inspiradas em suas próprias vidas. E de repente, no meio do show dos pseudoparanóicos pacientes atores, vão representá-las.
EURICLEIA
Lá em casa, enquanto formatávamos  o texto, o limite era implacável. Já não percebíamos quando éramos as atrizes, as personagens, as personagens de pesquisa, os fatos dos jornais, das evidências reconhecidas com a própria sabedoria ou a sabedoria de outros autores. Saímos para as ruas com gravadores, entrevistamos pessoas lindas e muitas pessoas feias. Gente que come, gente que passa fome, gente que trabalha, gente que rouba.
PENELOPE
Inclusive fomos pra portas de teatro, esperando o público sair e fazíamos perguntas do tipo: o que você vai levar pra sua vida depois de ter assistido esta peça? Um ou dois respondia - tudo, esse teatro é tudo, cara. O ator é mais bonito pessoalmente. Tirei uma foto com ele. Outros falavam da leveza – ri tanto que quase mijei nas calças. Ah, e teve uma família que contou que o espetáculo tinha aberto o apetite, porque em cena o ator mais velho comia um frango assado, com a sabedoria de um viking. Saíram do teatro e foram depressa pra churrascaria.  Mas o texto, as intenções modificaram suas vidas? O ruivo branquelo, com cara de pai da turma berrou, entrando no carro: eu só pensava no frango.

EURICLEIA
Eu só pensava no rato. Numa das cenas um rato invade o quarto delas, o quarto é a sala onde os pacientes têm aula de artes plásticas e artesanato, é onde elas ensaiam. Por que tínhamos pensado num rato? E de novo voltamos os olhos pra Homero. Claro, o rato é Homero que retorna do raio que o parta, com o aval dos deuses, para observar se a sua Odisséia fez efeito na Terra. Ele fica à espreita, olhando tudo com uma enorme ansiedade e tristeza.
PENELOPE
A paz entre homens e deuses não se concretizou. Mas o rato observa mais: que já não há crenças em deuses, não há, não há. A onipotência foi consagrada ao poder. E ao homem consagrou-se a violência, o pavor, a pobreza, a canga, os arreios, o chicote invisível que lhe atormenta o cérebro sem uso. (De repente) Jesus! Eu descobri, Euricléia. Nós não podemos estrear. Não vamos ter público. Não é isso que procuram.
EURICLEIA
Fique quieta.
PENELOPE
Vamos voltar pro musical.
EURICLEIA
Pelo amor de Deus, Penélope.
PENELOPE
Ou paramos agora ou teremos que morar na rua.
EURICLEIA
Não interessa, estamos prontas.
PENELOPE
Não, eu não to pronta. Quem é que quer assistir a própria desgraça?
ERICLEIA (ASSUSTADA PARA O PÚBLICO)
Eles. Eles virão.
PENELOPE
Não virão.
EURICLEIA
Virão! Eu garanto que é o que temos que fazer...
PENELOPE
O teatro que estamos propondo morreu na calada da noite, há muitos anos atrás.
EURICLEIA (GRITA)
O teatro que queremos é o que nunca morre, Penélope.
PENELOPE
Ta enterrado...
EURICLEIA
Eles virão. Virão e sairão daqui com a respiração dos que buscam a verdade. Virão, eu prometo, eles virão e não vão bater palmas pra nós duas, vão aplaudir sim, a idéia renascida. O sentimento que todo mundo esconde dentro e não tem coragem de transformar em ato. Eles virão. Virão, eu acredito. Virão. (cada vez mais lento, fixando a platéia distante) virão...







CENA SEIS – QUEM SOU EU?

PENELOPE (SOBRE A CADEIRA, como na cena um)
Vim de buscas desesperadas. Eu era pela reorganização de tudo que estivesse fora do lugar. Não durma, Euricléia. Resista aos medicamentos; temos que manter o equilíbrio. Respire: (inspira) um, dois, três, quatro... (expira) cinco, seis, sete, oito...
EURICLEIA
Viver com sono é quase viver nas sombras de todas as dúvidas. Eu permaneço no limiar, entre bandeiras e bombas de gás e, gritos distantes de um pesadelo. Aqui dentro, num lugar profundamente belo, existe a Euricléia verdadeira. A que brincava de boneca. A que não percebia que a liberdade era apenas uma palavra. A Euricléia, protegida, amparada e que tinha no pensamento apenas a alegria do brinquedo e a fantasia de um monge. Depois, me vem os flashes da garota, ela tinha uma verdade nos livros da escola e outra nos livros proibidos.
PENELOPE
Mas não durma. Por favor. Eu sei o que somos agora: o desejo de ter nascido para as coisas triviais. Contudo, é apenas desejo. Fomos colocadas no mundo pra impedir a marginalidade dos intocáveis. Uma missão irretocável, complicada... Não posso te ver assim, meu pobre passarinho. 
EURICLEIA
Quer que eu mate o rato?
PENELOPE
O que?
EURICLEIA
O Rato, Penélope! Você não pode ficar eternamente aí em cima.
PENELOPE
Ah, não! Vamos deixar a porta aberta. Uma hora dessas, ele sai.

APAGA A LUZ. APENAS VEMOS DOIS PONTOS LUMINOSOS, COMO SE FOSSEM OS OLHOS DO RATO CAMINHANDO PELO FUNDO DO PALCO.

PENELOPE (no escuro)
Euricléia, você dormiu? (silêncio) então, durma, meu passarinho. Durma que eu fico velando a noite. A noite vem com a certeza de que o fim não chegará. Quando as rosas exalam seus odores e ficam mais vermelhas no orvalho, mantenho a esperança de que o sol virá mais branco, ressuscitando a guerra. É uma luta contida, de passos pequenos, que vão encontrando outros passos pelo caminho, sob a terra ardente, soltando fumacinhas de um calor demoníaco, agitando os corpos e alimentando os corações para a batalha. Vejo-me no meio da multidão consciente, derrubando os marginais de gravata e tomando posse do alimento, do dinheiro dos cofres, da água dos rios. Também vejo a replantação das florestas, e respiramos profundamente um ar com odor de chuva fina. Todos estão, de pé, sobre as montanhas verdes, orvalhadas, percebendo o novo paraíso. Todos, sem exceção, foram transplantados de seus antigos corações, não os que pulsam com o sangue podre, mas os corações que vieram na alma, os que escondem a bondade e a ternura de um feto. Os homens que eram alvo de todas as incertezas, estão agora de mãos dadas com os homens que estavam perdidos. Todos devidamente iguais. Prontos para o beijo e o abraço. Prontos para mesma casa e pão. Iguais, na essência e na decência. A única maneira de identificar uns dos outros é a cor da pele, nus, isentos da malicia. Cantam a mesma canção. Choram as mesmas lágrimas, porque choram pela cor do céu. E a cor do céu tem as matizes do inicio do mundo. Um azul em forma de estrada, unindo a alma e a matéria sem separatismos. Como é inevitável, Deus e o Diabo se encontram e se abraçam. Espere... Estamos tão iguais. Não há mais sentido. Tanta paz. Tanto sorriso bom. Tanta fartura. Tanta igualdade. Não há mais sentido.

LUZ. EURICLEIA ESTÁ DEITADA NOS BRAÇOS DE PENELOPE

PENELOPE
É isso que queremos?
EURICLEIA
Não sei. Acho que seria melhor se soubesse quem sou, antes de continuar. Será que a loucura não é mesmo isso? (lentamente, se pondo em guarda) podemos estar erradas, e o importante é mesmo deixar tudo do jeito que está, como sempre foi. (mais rapidamente) o rato pode ser um aviso, Penélope. De que estamos entendendo tudo errado. Somos doidas. Merecemos estar aprisionadas, sacrificadas pelo desentendimento. Não são eles os cruéis, e sim nós. Nós que tentamos modificar a naturalidade...
PENELOPE
Não há vida pra mim, além do que acredito.
EURICLEIA
Em que você acredita? Se eu escolho, por quê  afastaria os outros do que escolheram pra si? Se pensarmos bem, não temos o direito de lutar por eles. É como uma sina, um karma, cada um tem o seu.
PENELOPE
Do que você está falando, pelo amor de Deus? Conformismo é um grande mal, Euricléia. Um grande mal.
EURICLEIA
Por que acha que o rato entrou justamente aqui, hen? Para espionar, verificar se estamos cumprindo direitinho a função.
PENELOPE
Qual função? Função? Em que, um rato sujo e irracional poderia intervir?
EURICLEIA
A nossa suposta cura está em ver o mundo como ele é, como ele está. A nossa função é por uma pedra no que acreditávamos ser e não éramos. Estar com a sanidade perfeita é estar como estão a maioria. Querem nos dizer que os bichos sim, eles têm a perfeição e o ideal de vida. Nascem, crescem, morrem. Imutáveis.
PENELOPE
E é só? Mais nada?
EURICLEIA
Eu não sei, não sei... se eu pegar ele na minha mão... (tentando encontrar o rato) imagino que falará comigo. Onde ele está? Aqui, aqui, ratinho... venha falar comigo. Diga tudo o que pensa.
PENELOPE
Por favor, não mexa com ele. Eu morro de medo de ratos.
EURICLEIA
Vem com a mamãezinha, vem... fala das suas intenções. Não se esconda de mim. Eu faço qualquer coisa pra ouvir seu discurso.


PENELOPE
Deixa ele quieto, por favor, por favor, por... Euricléia,continue dormindo. Eu vou chamar os enfermeiros, eles vão te por numa sonoterapia.
EURICLEIA
Rato desgraçado, aparece. Vem me morder, me envenenar, mas apareça. Sonoterapia? É pra isso que existem os ratos? Para me fazerem dormir, morrer em vida? Você é aliada da perdição, filha da puta. Você é algoz da minha inteligência. Por isso não tem injetam nenhuma droga. (Derruba-a da cadeira) cadela, cadela, cadela! Eu odeio você por isso.
PENELOPE
Me deixa em paz... to te pedindo paz, Euricléia. Ele vai subir no meu corpo, eu não quero esse rato perto de mim.
EURICLEIA
Odeio sua passividade, Penélope. Odeio suas conjecturas, sua bonomia, seu idealismo de menina mimada, de quem teve bonecas de louça pra disfarçar a...
PENELOPE (Tenta sair de baixo dela)
Chega, louca você é louca, enfermeiros... sai de cima de mim... enfermeiros...
EURICLEIA (fecha a mão, segurando um imaginário rato)
Puta, ta aqui, o rato ta aqui na minha mão... confessa que te puseram aqui pra me sacrificar. Confessa, puta, confessa...
PENELOPE
Pelo amor de Deus, não coloca ele em mim... pelo amor de Deus, Euricléia, eu tenho medo de ratos...
EURICLEIA
Aqui, ó. Vou esfregar o rato na sua cara, cadela, vou lambuzar sua boca com a ira do rato... ele vai chiar,chiar, espernear até que você confesse que é o carrasco do manicômio... o meu carrasco.
PENELOPE (EMPURRA-A LIVRANDO-SE DELA)
Não posso mais dividir meu sonho com você.

B.O.
CENA SETE – AH, QUE PENA!
PENELOPE
Que pena! Então é assim mesmo que você pensou? Euricléia, insana, não restabelece condições de permanecer com...?
EURICLEIA
É como tudo fica. Mesmo para os idealistas.
PENELOPE
Só vê essa saída, Euricléia?
EURICLEIA
De verdade? Sou muito pequena pra enxergar saídas, Penélope. De repente, quando penso nessa cena final, me percebo sem base, em entendimento. Confusa, sabe? Tão confusa que... se Homero, de fato, retornasse e constatasse a mesmice, iria sorrir. Porque, na realidade, a sua poesia não passou de um devaneio. Eu diria pra ele – mas eu mudei. Alguma coisa se transformou dentro de mim. Mas o quê? Ficou uma vontade do possível, mas a contra vontade da fatalidade: quantos foram um e sucumbiram únicos?


PENELOPE
Toda as discussões têm dois lados. É hora de optarmos por um deles. O que você acha de deixarmos aberto? Hen? Um final aberto... cada um que busque pra si o que quiser. Nós denunciamos, discutimos, alertamos, colocamos nosso ponto de vista e...
EURICLEIA
Não. Qualquer coisa que eu defender, soará falso. Até posso ter opinião como atriz, mulher, ser humano... mas não estou pronta pra dissecá-la, convertê-la em arte ou postura política. Eu nem sei o que é política, Penélope. Eu nem sei qual é a minha opinião. O que eu queria era um teatro de efeito. Que desse boca a boca, noticia no jornal. Eu tava pensando no retorno financeiro, não na transformação. Essa é a verdade. To com  pena de mim. E de você, também.
PENELOPE
O que é que ‘cê ta fazendo, mulher?
EURICLEIA
Vou dizer o que faremos: ligaremos pro gerente, liberamos o teatro, deixamos pago um mês pra que ele não fique no prejuízo, voltamos para o hotel, faremos todos os testes que aparecerem, rasgamos o texto em pedacinhos pequenos, colocamos fogo...
PENELOPE
Tudo bem. E quando sua crise existencial passar? Teremos o arrependimento pra gerar nossa sobrevivência? Você me colocou nessa, minha filha. Investi um bocado de ilusão nesse projeto, até um nome novo você me dedicou... e aí? Você pára de crer na sua crença, que é também minha e sai limpa? E eu?
EURICLEIA
Tantos sonhos já foram desperdiçados antes de realizados. Será mais um. Apenas mais um.não vou ficar aqui dando explicações do que não posso ilustrar. Nem vou chorar, nem gritar. As coisas vêem e vão, simplesmente. Subitamente, me vi perdida. A famosa luz no fim do túnel, apagou. Esse palco... essas idéias... esse pavor...
PENELOPE
Há alguma coisa que eu possa fazer pra te trazer de volta?
EURICLEIA
É como a Euricléia que eu criei. Não tem volta pra ela, não tem volta pra mim. Eu preciso sair daqui, antes que eu perca as esperanças. Ai, como eu amo ser atriz. Como eu odeio ser atriz! Como amo, como odeio... (Euricléia apanha as mãos de Penélope) escuta: não posso pedir perdão, nem que você entenda. (beija as mãos de Penélope) não posso imaginar amanhã. (arruma a cadeira no lugar, sai)
PENELOPE
Euricléia? Você tem certeza? Que silêncio, meu Deus! É assim o termino de todos os sonhos? Nunca se imagina o instante onde as coisas perderão sentido. Tanto trabalho, tantas dúvidas, tantos, tantos olhares. Faça de conta que sou uma rainha, ordenando uma lei nova, desesperada: que todos sejam atores, que representem cada detalhe do seu espetáculo, que aprofundem suas verdades em nome do teatro real. Eu sou a realeza aqui e determino que o palco seja o reino. E que o espetáculo seja interminável, para que ninguém tenha que sair de cena, antes de ter compreendido tudo.
OS OLHOS DO RATO CAMINHAM PARA FORA DE CENA.



PENELOPE (CANTA ENQUANTO A LUZ CAI)
TÃO LONGE
DE MIM DISTANTE
ONDE IRÁ
ONDE IRÁ
MEU PENSAMENTO
QUEM DERA
SABER AGORA
ONDE IRÁ
ONDE IRÁ MEU PENSAMENTO
QUEM DERA
SABER DA AURORA
QUEM DERA
SABER AGORA........






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