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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

GUERRA NO BECO

Guerra no Beco
                                                                           De Ademir Esteves
Abertura
Música 1

Primeira Cena
Homem turvo –  Grande é o silêncio na rua, depois que a lua canta.
Homem de 4  -   Vago  como um porco atrás do anjo. Um vizinho de calçada me diz que o frio é pior quando o anjo bate as asas.
Homem turvo – Então é melhor deixá-lo quieto nas borrascas do céu. Não temos coberta para evitar os arrepios.
Homem de 4 –    Mas, se o frio poderia me dar a ilusão de que parti com o anjo, porquê não procurá-lo, enfim?
Homem turvo –  Se ao menos tivéssemos o que comer.
Homem de 4 –    Não temos, mas há o que beber. E quando bebemos, soluçamos, pois o pensamento retorna aos dias em que a casa toda me chamava pelo nome. Havia beijos de mãe e surtos de pai. Safadezas de irmãos, roupa limpa, queijo fresco.
Homem turvo – O peso dessa idade arrancou-me o devaneio. (Silêncio) o que há no fim da rua, está vendo?
Homem de 4 –    Alguém matando alguém. Só isso.
Homem turvo – Ah!
(silêncio)
Homem turvo – Não consegue dormir?
Homem de 4 –    Há anos que não durmo. Tenho medo. Não gosto de dor, sabe? Por isso, toda vez que vem o sono, desperto, imaginando que um malvado qualquer vai me esfaquear. Devemos estar atentos a isso. Dor, só das cáries e das lembranças. Com essas já me habituei.
Homem turvo – Quase entendo o que diz.
Homem de 4 –    Olhe mais uma vez para o fim da rua. Não lhe parece estranho que alguém esteja com os olhos em nós?
Homem turvo – Alguns vão ler. Outros interpretarão a mim e a ti. É como se estivéssemos nas páginas de alguma revista... (sorri) estou me dando importância demais, não é?
Homem de 4 -    E quem mais daria?
Homem turvo – É. Quem mais?
Música 2
Homem de 4 –    Daqui a pouco amanhece.
Homem turvo – Como ronca o vizinho da praça. Posso ouvir daqui. Nesse beco tem algum calor, concorda?
Homem de 4 –    Sim, o vento passa por fora.
Homem turvo – Onde conseguiu esse anel?
Homem de 4 –    Formatura.
Homem turvo –  Você?
Homem de 4 –    Mas isso não interessa mais. Não mesmo.
Homem turvo – (depois de um longo tempo) às vezes tento chorar, e você?
Homem de 4 –    Nessa posição, as lágrimas chegam de qualquer jeito. Nem tento, apenas choro.
Homem turvo – Não te chamam de fraco por isso?
Homem de 4 –    Quem não chora, meu amigo? Até os que dormem em camas, ao lado de alguém que aparenta amar. Até o Imperador chora. Até...
Homem turvo – Que inveja!
(Os dois olham para o fim da rua)
Homem de 4 –    Vieram buscar o corpo.
Homem turvo – Que sorte!
Homem de 4 –    Gostaria de estar no lugar dele?
Homem turvo – Você não?
Homem de 4 –    Não gosto de sentir dor. Prefiro morrer de cansaço, ou de alegria.
Homem turvo – Você fala umas coisas...
(Tempo)
Homem turvo –  Tenho alguns escritos meus aqui, quer ver?
Homem de 4 –    Leia um pouco pra mim.
Homem turvo – Não me julgue, depois. (Lendo) tem um beco onde fico, onde fico há outros heróis, que se embriagam e cospem no chão. A gente se acostuma com o cheiro, os que usam sabonete e xampu, não. Não gostam de nós. Levam-nos para lugares estranhos, tem vez que o estranho é não ser levado. Ficamos. E há uma grande batalha no beco. Ninguém sabe de onde vim, mas eu sei: vim do mesmo lugar de onde todos vieram. O que aconteceu é que meus pés forçaram-se a caminhar para longe. E o longe fica muito perto do mesmo caminho que todos percorrem.
Homem de 4 –    Estou chorando.
Homem turvo – Também choraria eu, se pudesse.
Homem de 4 –    Será que chove, amanhã? Nunca sei pra onde ir quando chove durante o dia. Fico ensopado, depois espirro. O que é isso no seu bolso?
Homem turvo – Um retrato! Veja.
Homem de 4 –    Ah! Quem são?
Homem turvo – Alfredo, o primeiro. Luisa, Nanda e Carlos Júnior. Esta é Maria Branca... Morreu quando o Júnior nasceu.
Homem de 4 –    Era bonita. Esse é você?
Homem turvo – Ainda nem pensava em deixar a barba. Eu tinha uns 37 anos, por aí.
Homem de 4 –    Nem parece. E agora, que idade?
Homem turvo – 43.
Homem de 4 –    (olhando demoradamente para o rosto do outro) agora parece muito mais.
Homem turvo – Mas eu não era mesmo um belo homem?
Homem de 4 –    Ainda é, ainda é... E os meninos?
Homem turvo –  Não sei.
Homem de 4 –    Acredita que o anjo pode mesmo aparecer pra mim se eu pedir com muita fé?
Homem turvo – Não.
Homem de 4 –    Nem eu. Mas posso tentar, não acha?
Homem turvo – Posso te dar um beijo, meu amigo?
Homem de 4 –    Sim. Imagine que sou tudo o que perdeu e me beije. Ofereço meu rosto e meus braços. Assim, unidos, distrairemos o frio.
Homem turvo – Antes beba comigo o último trago... (bebem) agora sim, venha pra perto e me abrace, meu amigo.
(provavelmente haverá  luz quando o sol aparecer. Contudo, os dois já não estarão mais lá)

Música 3


Segunda Cena

Mulher de Jóia-  Tomava meu café da manhã tranqüilamente e, quando Evanira minha secretária abriu as janelas, pudemos sentir o fedor.
Rapaz de Boné-  Eu também...
Mulher de Jóia-  Habitualmente, deveria após o café, sair à rua com meus cães. Eles necessitam passear pela  manhã e ao anoitecer.
Rapaz de Boné-  Eu também passeio de manhã...
Mulher de Jóia-  Tenho que eu própria conduzi-los à rua, o senhor sabe, Evanira morre de medo deles. Os cães demonstraram uma efervescência deliberada e incontrolável assim que puseram as patas na calçada...
Sêo Guarda-                 Vá ao ponto, madame!
Mulher de Jóia-  Kell e Furacão farejavam, farejavam... Kell é minha boxer tigrada e Furacão um Dog Alemão de sete anos, adoráveis animais de estimação. Meu ex-marido os acusava de famintos insaciáveis.
Sêo Guarda-                 Vamos lá,  tenho pressa!
Rapaz de Boné-  Eu também tenho pressa...
Mulher de Jóia-  O que posso dizer, sêo Guarda? O senhor mesmo pode verificar... eles farejaram, latiram... o fedor cada vez mais insuportável, até que se soltaram das correntes e enfiaram-se no beco. Estão lá há mais de uma hora. Não me atrevo a entrar aí, não me atrevo. Mas preciso que o senhor, como autoridade os traga de volta. Certamente um desses marginais que freqüentam o beco está morto e apodrecendo sobre o lixo.
Rapaz de Boné-  Por isso esse mau cheiro, não é?
Sêo Guarda-                 Mas não há latidos...
Mulher de Jóia-  Como é escuro este lugar... Se tivessem atendido aos meus apelos, os órgãos públicos competentes teriam construído  aqui um jardim com uma bela fonte e bancos claros. (Segredando) Isto é um labirinto de excluídos. Podemos ouvir de longe gritos medonhos ou gargalhadas histriônicas vindo daqui. Dizem que  o beco é a hospedaria das almas. Estremeço...
Rapaz de Boné-  Eu também tremo.
Sêo Guarda-                 Onde está minha lanterna? Vejam que coisa, não trouxe comigo a lanterna.
Rapaz de Boné-  (Pega no ar, sem que os outros vejam, uma lanterna) A minha está comigo, sêo Guarda.
Sêo Guarda-                 (De mau humor e visivelmente contrariado) Hum! O Rapaz de Boné carrega uma lanterna consigo em plena luz do sol?!
Mulher de Jóia-  Entre no beco e traga meus meninos de volta. Não fraqueje se eles latirem um pouco para o senhor; basta encará-los e falar com a voz bem fininha: ‘Cadê os bebezinhos do titio?’ Não esqueça seus nomes, Kell é a boxer, Furacão o Dog...
Sêo Guarda-                 Sim, madame. Conheço essa parte... Pena que eu não tenha um lenço para tapar as narinas...
Rapaz de Boné-  (Pega no ar, sem que os outros vejam, uma máscara) Tenho algo melhor que um lenço...
Sêo Guarda-                 Sei... Também uma máscara...?
DO FUNDO DO BECO OUVE-SE TERRIVEIS  UIVOS DE DOR DOS CÃES.
Musica 4
Mulher de Jóia-  Ah! Não posso com isso...
ABRIU-SE SOB OS PÉS DA MULHER UM BURACO, POR ONDE ELA DESAPARECE.
Sêo Guarda-                 (Alheio ao ocorrido) Não me espantaria se tivesse uma bomba de gás...
Rapaz de Boné-  Por que eu teria uma bomba de gás? (Noutro tom) O senhor não viu que a Mulher de Jóia soterrou?
Sêo Guarda-                 Então ela não precisa mais dos cães?
Rapaz de Boné-  Ela poderia voltar a qualquer instante.
Sêo Guarda-                 Não, não acredito que volte, Rapaz de Boné, o fedor...
Rapaz de Boné-  Eu também sinto o fedor. Não vai lá?
Sêo Guarda-                 Você tem algum cão perdido no Beco?
Rapaz de Boné-  Não. A única coisa perdida é a espera. Bem... se há um morto é preciso dar-lhe uma cova.
Sêo Guarda-                 Sua atitude é suspeita, meu rapaz.
Rapaz de Boné-  Ainda assim, é necessário enterrar os mortos.
Sêo Guarda-                 Não tenho uma pá aqui comigo.
Rapaz de Boné-  (Pega uma pá no ar) Por isso, não!
Sêo Guarda-                 Está mesmo preparado para tudo, não é?
Rapaz de Boné-  (aproxima-se do Beco) Cheiro de carne frita.
Sêo Guarda-                 Talvez os marginais tivessem fome e assaram os cães da madame que sumiu no buraco...
Rapaz de Boné-  Talvez... O senhor notou o colar da mulher? Eu não usaria um colar tão valioso numa manhã de sol tão quente.
Sêo Guarda-                 Você me parece suspeito.
Rapaz de Boné-  Lhe dou todo o direito de suspeitar de mim, Sêo Guarda. O senhor e eu moramos no país dos suspeitos. Mas, há provas?
Sêo Guarda-                 Antes de falarmos em provas, você poderia me dizer se é comunista.
Rapaz de Boné-  Bolchevique, camarada! (Dá uma risada)
Sêo Guarda-                 Seu boné é vermelho, sua camiseta é vermelha...
MÚSICA 5
Rapaz de Boné-  (Num grito, pega no ar uma metralhadora) Eu sou Deus! (Rápido, apontando a metralhadora)   e você está arranjando mil desculpas para não conhecer o submundo, deparar-se com as vísceras podres dos moradores do beco... Eu, como Deus que sou, durante a madrugada enviei infinitos anjos para que estrangulassem os marginais do Beco... eu fiz uma guerra onde a liberdade da morte é a sensação eterna de vitória sobre a imunidade e inconseqüência... Nenhum deles reagiu, porque dormiam, mas não botei fogo neles, apenas cingi com as mãos dos anjos o derradeiro suspiro. Abri os braços, meus olhos incinerados de lágrimas, e senti as almas agarrando-se em mim como uma promulgação do término: do abandono, da rejeição, do pavor, do descrédito... Homens que tiveram tudo e que aprovaram para cargos outros homens, à sua semelhança, que lhe roubaram o prazer da resistência. Eu, como Deus colocado à margem da sociedade, voltei com tudo e vou levar comigo apenas os que preferiram a dor à comunhão.  (A metralhadora desaparece)
Sêo Guarda-                 Sinto muito, mas vou lhe dar voz de prisão.
Rapaz de Boné-  Eu concordo.
Sêo Guarda-                 Você me deixou com uma má impressão.
Rapaz de Boné-  Não. Não era a minha intenção, Sêo Guarda.
A MULHER DE JÓIA, SEM NENHUMA JÓIA,  SURGE DO ESCURO DO BECO TRAZENDO OS CÃES.
Sêo Guarda-                 Estão vivos, madame?
Mulher de Jóia-  Não esperaria pergunta mais idiota de um representante da lei, senhor. O homem que nos deveria defender! É preciso enviar alguém que faça uma limpeza no beco. O fedor vem de uma montanha de lixo e ratos mortos. Nem sei como pude sobreviver lá dentro.
Sêo Guarda-                 Pois não foi o que relatou o Rapaz de... (Olha ao redor. O Rapaz desapareceu) Pra onde foi ele?
Mulher de Jóia-  Ele quem, pelo amor de Deus?
Sêo Guarda-                 O Rapaz de Boné, madame?
Mulher de Jóia-  Que rapaz, meu senhor? Não vi nenhuma outra pessoa entre nós.
Sêo Guarda-                 E suas jóias?
Mulher de Jóia-  Estão bem. Kell parece meio assustada, mas...
Sêo Guarda-                 Estou dizendo das que tinha no pescoço, nas orelhas, nos dedos...
Mulher de Jóia-  O senhor está delirando? Acha que eu sairia em plena luz do dia coberta de jóias? (Indo embora) Me lembrarei de acionar outro departamento quando precisar de socorro policial... Mas que horror!
SÊO GUARDA PERMANECE UM TEMPO, CONFUSO. APROXIMA-SE DO ESCURO DO BECO, ASPIRA O AR E LEVA A MÁSCARA ÀS NARINAS INSTINTIVAMENTE. AO PERCEBER QUE AINDA TEM EM MÃOS A MÁSCARA E A LANTERNA CONSIGO, ESTREMECE E JOGA OS OBJETOS PARA O CHÃO. SEM OLHAR PARA TRÁS, SAI EM DISPARADA.
DO ESCURO DO BECO SURGEM O RAPAZ DE BONÉ, O HOMEM TURVO E O HOMEM DE 4.
Homem de 4-               Ele voltará?
Rapaz de Boné-  Pobre alma!
Homem Turvo-  Precisamos fazer um mutirão e limpar o beco.
Homem de 4-               É uma guerra, uma interminável guerra.
Rapaz de Boné-  (pega no ar um pão, uma xícara grande e um pedaço de salame) Estão servidos?
Homem de 4-               (Rindo) Com certeza...
Homem Turvo-  Você não teria um queijo fresco pingando soro?
Rapaz de Boné-  (Tenta pegar no ar) Sinto muito. Por hoje é só.
DESAPARECEM.
ADENDO
TEXTOS DO PROFETA FULIGEM INSERIDOS EM CENA CONFORME A DIREÇÃO:
o Profeta Fuligem

1
Profeta Fuligem       
Está claro! Eu não julgo nada! Pareço com alguém que tenha perguntas? (tentando tocar os personagens) Bem, bem! Você me agride, evitando um encontro comigo.
2
Profeta Fuligem
         Tenho pavor quando penso nisso: estar diante do fracasso. Devem saber do que estou falando. Falo da degradação que chegou: vocês e todo o mundo. Então, de repente, entram num sonho e acreditam que podem vir bater nas portas dos anjos, clamando piedade. Responda-me, por que não vieram antes, quando havia tanta oportunidade para a redenção?

3
TODOS (hipnotizados)
Profeta Fuligem,,, Profeta Fuligem... Venha com suas parábolas...
Profeta Fuligem
         Animei-me excessivamente para entender as coisas, digo de coração aberto e, talvez triste: apenas convivi com o que havia ao meu redor.  Bem, tenho perguntas sim... Entretanto... Pode ser que seja dono de uma alma com boas intenções, todavia não devo abrandar minhas impressões por tão pouco. O caminho que vocês escolheram calcou marcas profundas em nós, a tal ponto que estamos perto de nos tornarmos impacientes com quaisquer atitudes tomadas pelos homens. E isso é tudo.
TODOS (hipnotizados)      
Somos inimigos de Deus?
Profeta Fuligem
Não arrisquem dizer o nome de Deus. São indignos Dele.
TODOS (hipnotizados)
E, se ao despertar, renegar minha vida, meus bens, meus desejos, ainda poderei chamá-lo de Pai?
Profeta Fuligem
         Acredita, sinceramente, que essa foi a única oportunidade que teve? Para quê foram criados com tamanha perfeição? Não utilizam nada da sabedoria que possuem. Nem sabem o que é melhor para cada um. Somente imploram o subsídio de Deus: “Se, eu ficar rico, vou ajudar um monte de gente. Faça-me ganhar na loteria. Amém.” Consumo, rapidez, vaidade, volúpia... Horror, horror, horror! Quando penso nas lágrimas que derramamos em nome das criaturas! “Tira-me essa dor, meu Deus. Faça isso e acreditarei que o Senhor existe!” É, ouvi esse estilo de solicitação inúmeras vezes. Pouco se agradece, pouco se oferece, pouca sinceridade e tão pouca crença. Tudo decorado, como fazem os canastrões no palco. Um Pai Nosso e uma Ave Maria... Lembranças fúteis, que são repetidas às pressas e que oferecem alívio imediato: “estou em dia com os céus.” Mediocridade!     Com essa humilde pretensão de ser ouvido, arrefece ainda mais a indisposição dos anjos. 
4
Profeta Fuligem
Sempre tive outra impressão sobre os anjos. Provavelmente a melhor impressão. A certeza que posso ter é a baliza do destino: o inferno! E como padecem os que para lá vão! E digo mais, não há fogo nem chibatadas naquele lugar. Há silêncio. Assombrosa quietude.  Os que passam pelas celas perdem a voz, a audição, mas não o olfato, porque lá há um fedor cáustico, irreconhecível, nunca antes inalado por ninguém. E o pior, não há contato. Você vive só, num quadrado escuro e frio, paredes viscosas como pele de cobra e, nu... Sem ouvir e mudo, completamente, para sempre.
(rindo) Bastam seus olhos pra me dizerem: você está com tanto medo de morrer...
5
Profeta Fuligem
Aí você me pergunta: Deus é tão mau assim? (sorri, depois fica sério e quase chora) Ele está cansado! É mais um desistente. Faltam-lhe coragem e crença para continuar investindo na humanidade.
Homem Turvo
O diabo venceu?
Profeta Fuligem
         (esbofeteia-o)
Homem Turvo
         O diabo venceu?
Profeta Fuligem
(outro bofetão)
Homem Turvo
Eu sou o diabo?
Profeta Fuligem
(vai bater, mas consterna-se e o abraça chorando)
Homem Turvo
         Como faz frio aqui!
Profeta Fuligem
         (ainda com ele nos braços) Sim, faz! Não temos aquecedores, nem corações sinceros que venham preencher com hálito quente o vazio que o inverno trouxe. (Afasta-o) a verdade é que, sendo um sonho, será também autêntico quando seu letargo compilar. Nem posso dizer que o amo, Homem Turvo.
        






Terceira Cena
Música 6
Homem Grávido - (vem em direção ao beco, deslizando sobre uma plataforma baixa rente ao chão. Sua barriga está enorme desde o seio até os calcanhares) Vocês, que estão à espera desse nascimento, refugiados nos cantos obscuros do beco, saibam que vim muito depressa, antes que ocorressem as próximas contrações, já que tudo está dilatado e amplo, pronto para o nascimento. As contrações doem menos do que me preveniram. Fico com receio de quando vir à tona, ou à luz esse rebento, eu em minha plena consciência o repudie. Se for uma criança feia, repudio. Se for muito bonita, repudio. Se nascer doente, com fome, com medo, repudio. Eu sou o pai, naturalmente. E um pai deve repudiar o que não pretende sustentar. De qualquer forma repudiarei o que estou gerando há anos. O parto será realizado na entrada do beco e o primeiro que pegar o objeto impuro, expelido de mim será responsável pela vida e pela conseqüência dele. Eu sou o pai, como sabem, por imposição divina e pela doutrina do pecado. Mas nem por todo o amor eu embalarei o filho. Como ele entrou dentro da minha barriga, perguntou-me uma criança suja, ah! eu respondi-lhe com um bom safanão no meio da cara. A criança suja foi cair longe. Talvez eu não devesse ter batido na criança suja, mas eu mesmo não sei responder como isso veio aqui pra dentro. Vejam meu estado: enorme gravidez. Quando começou achei que fosse um verme, desses que vão crescendo, crescendo, mas são naturalmente ejetados pelas fezes, um dia. Mas o resultado dos exames acusou que eu seria pai. Tentei o aborto. Informaram-me que nada neste santo mundo descolaria o feto dos meus intestinos. Eu teria que agüentar o peso até a hora do parto. Foram anos... (Contração) é hora! Aproximem-se, homens do beco, o primeiro que tocar o bebê poderá ficar com ele.


A BARRIGA COMEÇA A ABRIR. NASCE LENTAMENTE O SER. ELE TEM UM OLHO ORIENTAL OUTRO OCIDENTAL. AS RAÇAS NEGRA, AMARELA, VERMELHA E TAMBÉM BRANCA ESTÃO ESPALHADAS PELA PELE. UMA PARTE DO CABELO É LISA E CASTANHA OUTRA CRESPA E NEGRA, OUTRA AINDA LOIRA E ENCARACOLADA.
Quarta cena

HOMEM SUJO VEM DO BECO E AMPARA A CRIATURA.

Homem Grávido – É sua a aberração. Leva embora.
Homem Sujo - Sim, estarei cuidando dela para que não sinta vontade de ir te procurar.
Ser Nascido – Qual chamarei de pai? O homem grávido ou o homem sujo que era a criança suja que o homem grávido esbofeteou?
Homem Grávido – Como estou leve! (Murcha até o chão, some).
Homem Sujo – Preciso de um banho, antes de amamentar o bebê.


MÚSICA 7
DO BECO VEM SONS DE GUERRA E MUITOS RELÂMPAGOS.

Ser Nascido – O que é isso?
Homem Sujo – Calma, bebê. É apenas um dia de eleições por aqui.
Ser Nascido – Também quero votar. Eu posso votar? Quais são os candidatos?
Homem Sujo – Não sei bem. Os mesmos de sempre, talvez. Mas no beco você não é obrigado a votar, meu bebê.
Ser Nascido - Eu tenho um olho oriental outro ocidental. As raças negra, amarela, vermelha e também branca estão espalhadas por minha pele. Uma parte do meu cabelo é lisa e castanha outra crespa e negra, outra ainda loira e encaracolada. Se for pela paz no beco eu quero votar.
Homem Sujo – Beco em guerra é beco sem esperanças.
Ser Nascido – Ah, que pena! Já não posso fazer nada pra ajudar, então?
Homem Sujo – Se não tivesse demorado tanto dentro da barriga de seu pai...
Ser Nascido – E se eu voltasse pra barriga novamente?
Homem Sujo – (Dá o peito à Criatura) Venha, mame, seu problema é fome.

MÚSICA. A PLATAFORMA É PUXADA PARA DENTRO DO BECO. OS TIROS, RELAMPAGOS E GRITOS VÃO INTENSIFICANDO SUAS FORÇAS.

Quinta cena

ALGUEM TOCA UMA MÚSICA NUM ACORDEON. ANOITECEU E OS MORADORES DO BECO ESTÃO VOLTANDO PARA DORMIR. PASSAM PELA CENA E ENTRAM NO BECO. NÃO OS  IDENTIFICAMOS POIS TUDO É SOMBRA. SURGEM DE TODOS OS LADOS. TRAZEM CONSIGO O QUE ADQUIRIRAM DURANTE O DIA: SACOS, LATAS, GARRAFAS... CANSAÇO. OS ULTIMOS A ENTRAREM SÃO HOMENS SANDUICHES, E QUANDO DÃO ÀS COSTAS PARA O PÚBLICO, PODEMOS LER:
1 HOMEM SANDUICHE - SE VOCÊ AINDA PODE VIVER, FIQUE LONGE DE NÓS OUTROS.
2 HOMEM SANDUICHE – SE HÁ O QUE BEBER, BEBA.  MAS CUIDADO PARA NÃO AFOGAR AS MÁGOAS NA ÁGUA DOS OUTROS.
3 HOMEM SANDUICHE – A MÚSICA ACABOU.

CESSA A MÚSICA DO ACORDEON. SILÊNCIO.

Sexta cena

O Velho Marciano entra em cena carregando sacolas velhas, cheias de cacarecos e, puxado por uma corda, o Velho Lunático.

Velho Marciano -  Não empaque, Velho Lunático, você é um velho não um jumento.
Velho Lunático  -  Meu joelhos estão massacrados, Velho Marciano. Por que não volta pra Marte e me livra de rastejar tanto, tanto, tanto?!
Velho Marciano – Que é? Meu histórico longo e planejado afirma a possibilidade de que eu seja superior a um lunático, sendo eu um marciano. Um velho lunático será sempre inferior a um velho marciano.
Velho Lunático  - Na escala social?
Velho Marciano – Escala, escarra, escalada, escachada...
Velho Lunático  -  Na escala animal.
Velho Marciano – A linha graduada das notas cítricas, quando odorizam os sovacos estrangeiros, já estão definindo que há mais cheiros longe e perto do que imaginamos. Você, velho, rasteja e sinta no solo os odores das desgraças da pátria. Eu, velho e importante marciano, de nariz em pé, farejo os cheiros mais distantes da mesma pátria ou de outras.
Velho Lunático  - Me leve de volta ao beco. Não quero ir para lugar algum. Já me habituei, já me habituei.
Velho Marciano – Não resista a mim, criatura. Não faça isto ou mato você e dou aos cães do planalto, ou planície... Poderes, poderes! Eu os tenho. E faço uso deles, velho, velho, velho lunático.
Velho Lunático  - Acho que você está brincando.
Velho Marciano – (ficando furioso, cada vez mais, enquanto tira comidas podres das sacolas) Brincando? Você quer jogar, não é? Como todos os que desejam ser... chamados... de homens, não é? (amarra a corda ao redor da própria perna) Melão, cascas e bagaços de tangerinas, omelete, arroz com açafrão... Acha mesmo que eu não me livro logo, não é, desse peso incomensurável que é você, não é? Bolo de aniversário, pão duro com geléia... Aqui! Queijo com goiabada. (mostra um pedaço negro de queijo) Come.
Velho Lunático  - Eu morro se comer isso, Velho Marciano.
Velho Marciano – Coma!  (enfiando pela goela dele) e não vomite.
Velho Lunático  -  Se eu vomitar, você me mata de outra maneira?
Velho Marciano – Mas é claro que mato.
Velho Lunático  - Bom! Vou mesmo morrer.
Velho Marciano – Do que se trata?
Velho Lunático  -  Qualquer hora dessas eu vou mesmo morrer.
Velho Marciano – Talvez...
Velho Lunático  - Já morri antes. Na década de 60, morri uns 15, 20 meses. Em meados de 70, morri de overdose e nos 80 não, eu não morri nos 80.
Velho Marciano – Mas agora você tem mais de vinte anos.
Velho Lunático  -  Tenho mais... Porque houve umas duas ou três mortes minhas nos anos 90. Morri junto dos roqueiros asfixiados, dos prisioneiros inocentes nos cárceres que ficavam aos redores da Boca do lixo. E vim para o beco. Mas não morri em nenhuma guerra dessas daqui. A não ser quando o velho Marciano apareceu e amarrou meu pescoço, aí morri de olhos bem abertos.
Velho Marciano – É. Seria inútil cometer esse assassinato. (olhando demoradamente para o céu) não tenho como voltar para lá, não é?
Velho Lunático  - (ri)
Velho Marciano – Vamos ficar no beco. Retorno as coisas para as sacolas... (catando o lixo e enchendo as sacolas novamente)
Velho Lunático  - (cantarola) O homem requer jornais
                            Se não para ler, para se esconder
                            O homem que lê o escrito
                            Não junta dois com mais dois
                            Pois quatro não vale mais
                            Que uma fração do sabedor, saber dar,
                            Tra lá lá lá,  dar-se ao saber
                            O trá lá lá do sabedor
                            É o homem que enxerga e lê
                            A manchete titular
                            É o que não soma, nem divide
                            Nem sabe multiplicar
                            E de menos conhecer
                            O meio, o centeio da notícia
                            Fica ainda a quem escreveu.
Velho Marciano -        Quieto!
Velho Lunático  -        (sempre cantarolando) Fica ainda a quem escreveu...
Velho Marciano -        Peço-lhe silêncio, Velho Lunático.
Velho Lunático  -        É o homem que enxerga e lê...
Velho Marciano -        Está certo, sentarei ao seu lado e cantaremos.
Velho Lunático  -        Junte-se a mim, nessa cantoria de protesto...(recomeça a canção)
Velho Marciano -        (senta-se ao lado dele e canta, abraçando-se às sacolas)
TIROS DE METRALHADORA E GRITOS NO BECO. O CHÃO COMEÇA A GIRAR, DE FORMA QUE OS VELHOS SÃO COLOCADOS DENTRO DO BECO ESCURO. NO GIRO O JOVEM TERRÁQUEO APARECE FAZENDO TRICÔ COM LINHAS RECICLADAS DE CORES SUJAS. A MÃE DE TODOS, DE PÉ SOBRE UM CARRINHO DE SUPERMERCADO, FINJE ESTAR VOANDO SOBRE O MUNDO.
Velho Lunático  -        Trouxe-nos ao principio a voz do canto.
Velho Marciano -        Temos ali o Jovem Terráqueo, que prazer ele sente em tecer seus fios para confeccionar a manta de inverno...
Velho Lunático  -        Há anos o Jovem Terráqueo tece.
Velho Marciano -        Como diriam lá em Marte: pobre terráqueo.
Velho Lunático  -        Na lua diriam outra coisa.
Velho Marciano -        Impossível!
Velho Lunático  -        Tô lhe falando, Velho Marciano, diriam sim.
Velho Marciano -        Na Lua diriam o que?
Velho Lunático  -        Ah, diriam outra coisa, menos pobre terráqueo. De maneira alguma diriam pobre terráqueo. Definitivamente a expressão seria outra.
Velho Marciano -        Interessante... Em Marte diriam: pobre terráqueo e depois haveria uma grande gargalhada na bancada.
Velho Lunático  -        Tá vendo? Na lua gargalhariam antes de dizerem qualquer coisa.
Velho Marciano -        Não?!
Velho Lunático  -        Preferimos rir antes porque somos mais felizes que os Marcianos. Rimos antecipadamente das desgraças. Acreditamos que rir depois é coisa de malucos.
Velho Marciano -        Como são cretinos os lunáticos e conseqüentemente como são estúpidos os terráqueos. É preciso ouvir a anedota para achar graça.
Velho Lunático  -        Rá, rá... a grande diferença, meu caro Velho Marciano, é que não ri-se de piadas, ri-se do homem, do homem pateta, do homem marionetizado, dos que se deixam colocar cordas ao pescoço.

O JOVEM TERRÁQUEO E A MÃE DE TODOS FOCAM SUA ATENÇÕES EM VELHO TERRÁQUEO. E RIEM. SE JUNTA AO RISO O VELHO MARCIANO. GARGALHAM ALTO E HISTRIONICAMENTE. O VELHO LUNÁTICO FIXA OS OLHOS NA PLATÉIA, ENTÃO TODOS OS PERSONAGENS TAMBÉM OLHAM NA MESMA DIREÇÃO.  VELHO MARCIANO, VELHO LUNÁTICO, JOVEM TERRÁQUEO E A MÃE DE TODOS NÃO PARAM DE GARGALHAR, FIXANDO A PLATÉIA.

Sétima cena

Enquanto o Jovem Terráqueo e a Mãe estão rindo para a platéia, Velho Marciano e Velho Terráqueo saem de cena sendo arrastados por um vendaval. Da gargalhada A Mãe e o Jovem terráqueo passam para as lágrimas.
Entra o Narrador com um chicote enorme. Flutua sobre rodas invisíveis.

Narrador –                   Calem-se, mulher e filho. Os senhores, pequenos inocentes e variáveis personas desta platéia, queiram ouvir-me. O grande resumo da guerra é neste momento uma solução para as dores que sentiram ou não. A critica da razão, a mesma que desconhecem, emolduram as suas culpas e, libertárias conclusões são dadas a partir da pequena e quase inútil presença dos senhores no mundo. Então, é preciso resguardar um mínimo de sabedoria inicial, ou seja, aquela que todos esqueceram e nos cobram constantemente. Se bem, que a verdade perdura por um minuto e logo depois já apagamos da mente. Que dirá, então, acreditar em tantas verdades que surgem todos os dias dando certeza que seria o único caminho para o reencontro com o principio. Os senhores acreditem em que quiserem acreditar, não vim impor ou expor porcaria nenhuma. Estou cá para apontar-lhes esses dois: A Mãe e Jovem Terráqueo.
A mãe –                        Sou A Mãe como podem ver pelos trajes e pela aparência.
Jovem Terráqueo –      Sou o Jovem Terráqueo, nem tanto pela percepção ocular, pois me consideram um andrógino.
Narrador –                   Investigam a possibilidade de o Beco ser apenas uma citação corriqueira, enfeitando e simbolizando o que de fato representa. Mas, se analisarmos a essência do exposto chegaremos ao contágio dos corpos fazendo a guerra imputada nesta escura travessa. Qual resolução esquadrinhamos? Estamos à procura de uma? Ou é somente um patifário investigador sobre o humano inexistente em nós?
A Mãe -                        Eu digo: o senhor Narrador encaminha nossa opinião para as suas próprias conclusivas.
Narrador -                    Ah! A Mãe! A mãe de nosso tempo que não vai para as portas das fábricas... Fica a espera de ser assistida, fala na televisão que não vai pedir, porque tem quem lhe entregue à porta.
Jovem Terráqueo -      Por que chegamos nesta discussão assombrosa, senhor? Acusa-nos de assistidos? Quem é o Narrador para nos impingir sua verdade?
A Mãe -                        Julga-me capaz de empreitar placas acusatórias a quem me dá sopa e cobertas velhas?
Jovem Terráqueo -      Teria eu, que nasci da Mãe desnutrida um filho desnutrido, vigiar forças para o trabalho que não há?
Narrador -                    A qual verdade dizem que digo? Só relata o Narrador. Aqui está o texto. Leiam vocês mesmo. (lendo) A Mãe de nosso tempo que não vai para as portas das fábricas... (Joga os papéis fora) Sou empregado da palavra dita, minha senhora, e digo, digo se me pagam para dizer.
Jovem Terráqueo-       Então você não diz por que sente?
A Mãe -                        Quero ficar no beco, é isso? Prefiro a pedra para dormir ao invés de um colchão?  Sou feliz porque o céu me cobre e abomino a idéia de telhas para ninar meu sono?
Narrador -                    Não sinto piedade pela senhora porque a chamam de mãe, não, definitivamente, não. Instituiu-se que as mães são carentes de compaixão por terem nos braços filhos de barrigas grandes e olhos que pronunciam socorro. (Terrível) A verdade perdura por um minuto e logo depois já apagamos da mente.
Jovem Terráqueo -      Estou cansado de ser usado para causar repulsa ou aflição. 
A Mãe -                        Não sofra, filho. Deus nos dá amparo.
Narrador -                    De qual Deus a senhora está falando? O que é dessa imagem programada que lhe faz pronunciar por um nome e clamar invariavelmente cada vez que lhe dão a chance de pensar? 
Jovem Terráqueo -      Por que nós devemos pensar pelo seu pensamento? O que prova que o que diz está mais certo do que o que nós dizemos?
Narrador -                    Não posso responder a isso. Nem sei o que disse há dois segundos atrás. Não, não posso responder...
A Mãe -                        Todos que crêem na sua verdade individual trazem um chicote nas mãos, senhor. É o que deseja? Nos aplacar na pele o seu batedouro? Eu não sou pura, nem idiota. É necessário ter coragem para ser mais um. Temos vários sinônimos: excluídos, desgraçados, favelados, marginais... Assumir quaisquer desses nomes, senhor, representa uma luta diária. Estender a mão para pedir... Tem o mesmo significado que o poder tem. E sabe por quê? Porque morrer é infalível.
Narrador -                    Ao falar sobre essas coisas, senhora, não estou condenando, tampouco depreciando sua qualidade como ser humano...
Jovem Terráqueo -      (rindo) O Narrador fala como um elegível, mamãe. Ele talvez não compreenda que eu aos 17 anos não tenho causas, o hábito nem o monge faz mais, meu instituído Narrador, pois basta dizer que é, que serve à Entidades Espirituais. Eu sirvo ao costume de minha mãe... Ela diz: o destino não existe senão para a extinção, a oportunidade não existe, meu filho, há os que jantam e há os que não têm estomago.  Pra que ir mais longe, pra que?
A Mãe -                        Calma, meu menino. Seguir outro caminho pode ser uma opção. Dei-me conta que talvez eu lhe tenha prendido demais a mim e às minhas convicções.
Narrador -                    As contendas intermináveis do homem.
Jovem Terráqueo-       Desiludir-me agora não vai melhorar nada, minha mãe.

ENTRA O HOMEM DE 4, ARRASTANDO-SE PELO CHÃO.

Homem de 4  -             Morreu o Homem Turvo. Sua barriga está aberta e alguns ratos alimentam-se de seus intestinos.
A Mãe -                        Vamos depressa colocar o corpo em sacos de lixo. Venha ajudar Jovem Terráqueo.
Jovem Terráqueo -      Posso recusar?
Homem de 4 -              Deixe aí seu filho, ele não precisa ter essa visão.
A Mãe -                        (olha demoradamente para o Narrador. Depois afaga os cabelos do Jovem Terráqueo) Estará aqui quando eu voltar?
Jovem Terráqueo -                Você quer que eu esteja?
A Mãe -                        Você precisa de umas boas chicotadas. (Sai depressa de cena).
Homem de 4 -              Estamos com muita fome, Jovem Terráqueo. Penso que você não se importaria de presentear-nos com sua mãe. (sai arrastando-se e gemendo)

O NARRADOR SEM NENHUM GESTO DE PRAZER OU INSATISFAÇÃO DÁ INICIO ÀS CHICOTADAS NO JOVEM TERRÁQUEO, QUE POR SUA VEZ CANTA OLHANDO PARA O NADA.

Jovem Terráqueo -      Comam a minha mãe
                                      Sirvam-se de seu sangue
                                      Mas retirem o coração
                                      Os órgãos de execrável sabor
                                      Para vender ao banco de dados
                                      Na oficina de horrores
                                      Da faculdade de medicina
                                      Com o dinheiro dessa venda
                                      Amanhã comerão arroz e feijão
                                      Com um tanto de farinha
                                      Eu serei chicoteado
                                      Mas amado pelo beco
                                      Lembrado como herói
                                      Que a ninguém destrói
                                      Qualquer andança minha
                                      Fará com que eu retorne
                                      Aos becos sem saída
                                      Comam minha mãe
                                      Estarão alimentados
                                      Estarão saciados
                                      E eu herói encontrando causa
                                      De dar a quem me deu
                                      Para esperar minha vez.

UM TECIDO VERMELHO COBRE O NARRADOR QUE CONTINUA CHICOTEANDO PARA TODOS OS LADOS. O JOVEM TERRÁQUEO ERGUE OS PUNHOS, ENTORPECIDO PELO FUTURO E SOLTA UM GRITO PARA OS ASSISTENTES:

JOVEM TERRÁQUEO -              Estamos juntos nessa, companheiros.
(depois de um grande silêncio, chora) Papai do céu, quando eu comi a minha mãe ela estava doce e precária, como devem ser os estragados desse mundo. Tudo está duplicado na essência: os genes, as cores, as histórias de viver, sempre as mesmas e diferentes. De novo o holocausto previne a Terra. Os cães morreram. Os aleijados morreram. Os de outros mundos... Ai, papai do céu! Morreram mais ainda de inconsciência. Quem podemos ser de fronte a miséria mágica que assola a tudo? Retumba as árvores que caem. Sussurram os solos inférteis, caem as casas, sobem as mares, aplacam os terremotos, renascem os dinossauros, para de novo, gelarem e gelarem e gelarem.  (Rindo) Papai do céu, faça sua mão ficar tão enorme quanto o globo e empurre, massacre tudo, recomece, por favor. Somos culpados e indecentes; frívolos e malditos; estamos longe de poder resgatar a sua vontade. (olha para o nada à sua frente) Medíocres, medíocres, medíocres, medíocres, medíocres, medíocres, medíocres, medíocres, medíocres...

MÚSICA 8


Cena sem fim

ENTRAM TODOS OS ATORES. QUASE NUS, COM A PELE SUJA. UM FEDOR INSUPORTÁVEL INVADE O TEATRO.

ATOR 1 – (MUITO RÁPIDO) Feche as portas
ATOR 2 – (RÁPIDO) Abram as janelas
ATOR 3 -  (mais rápido) Chegou o momento do fim do mundo, todos estão presos e fedendo a lixo e morte. Fechem as janelas, abram as portas
JOVEM TERRÁQUEO – Na, não pode ser assim, é preciso dar tempo para que se salve o espírito
ATOR 4 – Que espírito?... (rápido) Não há espírito que suporte a verdade, não há verdade em nenhum espírito, não há suporte para a liberdade, pois a liberdade é fria e oculta de nós, os espíritos inexistentes da verdade mentirosa.
JOVEM TERRÁQUEO – (começa a rezar, mistura várias orações e cantos religiosos, cristãos, candomblé. Ele gira e cai, dança e salta como um possuído)
ATOR 1 –  é válida a tentação
ATOR 3 -  a tentação , a tentação
ATOR 2 –  vamos morrer todos no teatro fechado, não será novidade, outros já se foderam em teatros fechados... gás, mais gás...
ATOR 1 – Alguém  precisa ser a nova Eva... eu não posso ser Adão, não posso, não posso.
ATOR 3 – Só mesmo mais uma guerra pra nos dizimar... Dizimo, dizimo, vinho e mesa farta na sacristia. Merda e fome no beco...

COMEÇAM AS EXPLOSÕES DE GUERRA QUE DURAM UNS 4 MINUTOS ININTERRUPTOS. ELES SE COBREM COM UM MANTO AZUL E PERMANECEM SOB ELE. MENOS O JOVEM TERRÁQUEO QUE PARECE FELIZ COM A GRANDE GUERRA. HÁ MUITOS TIROS E CANHÕES QUE APARECEM COMO SOMBRAS POR TODO O TEATRO. DE REPENTE UM PERFUME DELICIOSO E CALMANTE FICA NO AR. O JOVEM TERRÁQUEO SE AQUIETA E OLHA PARA O MANTO.

JOVEM TERRÁQUEO – O manto azul... As portas de saída estão abertas. Por favor, não aplaudam, não aplaudam... Pensem um pouco e vão embora.

TODOS OS ATORES LEVANTAM E SAEM DE CENA.


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