Convite para um chá com Deus
Por Ademir Esteves
Em dois ambientes: o quarto sombrio e a sala de jantar numa pequena casa no interior profundo do País.
Personagens:
Clara - perto de 40 anos
Melina Gabriela (Meg) - perto dos 50 anos
Nair - mais de 40 anos, não aparente
Divina - mulata de 25/27 anos
Tia Lúcia - uma senhora
Francis – jovem e bela, exatamente como no dia de sua morte. Sua participação é isolada e solitária
Cena 1 –na sala/ no quarto
Na sala Tia Lúcia preenche um relatório num pedaço de papel. Depois segue para o quarto ao encontro de Divina. Clara vem do quarto, prepara o medicamento de Meg e volta para o quarto.
Clara -
Estive pensando, Meg, se por um descuido do acaso eu tivesse tido uma oportunidade brilhante de ser feliz, como me veria?
Meg –
Oh, que pergunta, Clara! Não sei. Nesse instante não me valeria saber, pouco vejo, você sabe. Ahn! Muito provável que eu a observasse um pouco mais, certamente haveria uma luz terrível saindo de seus olhos. Mas, se é assim, assim fica, meu bem.
Clara – (num suspiro)
Foi onde errei: não experimentar todas as luzes. E não digo das que via através da cortina - entretanto existiram poucas que me instigaram - queria ter podido ir atrás das pequenas faíscas que alguns homens deixam como rastros ligeiros. Não quis o nosso Amado Deus que esses olhos jorrassem, nem ao menos filetes opacos de lâmpada queimando, e sim, e quantas vezes, jorrassem lágrimas. Você pode questionar a tristeza que investe todo meu comportamento prosaico, pode até pactuar o sentimento, logicamente não poderá sentir como eu sinto, finalmente pode servir de consolo, mas nunca conseguirá compreender.
Meg–
Houve um dia, Clara, um dia quente, estávamos na fazenda do tio Lilo, e mamãe tocava no piano Romance de Amor... não se lembra? E você, mirrada e paciente sobre a cadeira de palhas pendurada, solevava os pés de encontro ao chão e de novo no ar, havia uma expressão tão piedosa em seu rosto que todo meu coração se apaixonou definitivamente. E vieram as milagrosas palavras no pensamento “como amo minha irmã caçula, como amo, Pai Nosso”.
Clara –
Devia ser o piano de mamãe que a comoveu.
Meg -
Não posso rir, agora, meu bem. Tenho um peso no estômago que causa ímpetos de gritar.
Clara –
Isso desaparecerá, eu prometo. A dor é enigma a ser resolvido sempre, todos os dias, e quando podemos estar junto nessa resolução, mais rapidamente nos livramos dele. Eu prometo que a dor deixará de existir em breve.
Meg –
E como? Às vezes vem tão forte e insuportável que peço a morte...
Clara – (confortando-a)
Siiiiiii!
Meg -
Antes, quando você segurava minha mão, abrandava. E agora, assim que Adônis se foi, vieram transtornar ainda mais meus dias e, como se não bastasse, as noites. São piores a noite, quando há silêncio e mais breu. Não sabe o quanto! Diga, como vou sobreviver além da dor?!
Clara –
A da carne é ínfima. A que te aflige, Meg, é parecida com a minha. Vem de perdas, tão imensas perdas...
Meg –
Não vamos chorar, vamos?
Clara –
Quais lágrimas, querida Meg? Estamos remanescidas de auto-piedade hoje. Sabemos ainda bordar? Onde pusemos aqueles enormes bastidores, hen, Meg? Aquele em que bordamos juntas a toalha branca de tia Lúcia? Consegue avistá-lo daí? Desculpe-me, minha irmã, como sou horrível. Veja só o que tenho nas mãos: o cachecol de Nair. Ingrata Nair, nos deixou para ser feliz! Tricotei quando estive nas montanhas, a pedido do Doutor Galdino, dizia que eu tinha pulmões de rebento e que as montanhas os renovariam e fortaleceriam. Queria me ver forte como os touros da feira, louco e estridente Doutor Galdino. O que foi feito dele?
Meg –
Pare! Por favor... por que recordar coisas que foram cruéis?
Clara –
Não, não as considero cruéis necessariamente, não mesmo. São parte de nós.
Meg –
Fico feliz em ter escolhido você para dedicar o fim da minha vida, Clara.
Clara -
Só não posso suportar que sinta dores, Meg. Gostaria que voltássemos aos tempos em que a casa estava cheia e éramos ruidosos como lavradores cantantes. Há tanto eco aqui! Faz-me acreditar nos fantasmas. Tivemos uma discussão sobre namorados no dia em que Nair anunciou o noivado com Hugo Francisco. Mamãe sorria, batendo com a colher no tacho, e a cada batida referia-se ao homem que nós duas amávamos Alencar, Alencar – tam – Alen – tam – car! Era um belo sonho!
Meg –
Alencar! Eu não poderia ter tido esperanças com ele, jamais!
Clara –
Pode me dizer, Meg. Adônis se tornou o retrato cabal de Alencar. Sempre soubemos: Nair, tia Lúcia, mamãe e eu... Papai, talvez.
Meg –
Sim. Eu também não quis esconder-lhes o pai de Adônis, apenas torná-lo esmaecido e inválido na minha memória.
Clara –
Não a culpo, não! Era necessário, eu sei! De tal maneira, que nos calamos diante de ti!
Meg –
Tanto tempo e também meu filho foi embora! Devemos parecer aos outros monstros dos quais é preciso fugir.
Clara –
Há alguém lá fora!
Meg –
Penteie meus cabelos, Clara, depressa!
Clara –
Sim, voltarei para arrumá-la se for alguma pessoa importante.
Meg –
Não me deixe só por muito tempo
Clara – (saindo)
Volto num segundo! Se for preciso a substância está no copo, ao lado do livro (fica ainda, observando Meg).
Meg–
Já foi? Essa nuvem detestável na minha frente... eu quero tornar a ver, meu Bom Pai! (apanha o copo) Faça-me a gentileza de evaporar, líquido amargo. Não pretendo bebê-lo, ah, não pretendo...
CLARA SUSPIRA BAIXINHO, COMO SE TIVESSE PIEDADE E SAI, PASSANDO PELA SALA DE JANTAR E DEPOIS SUMINDO PARA FORA
Cena 2 - ainda no quarto, Divina e Tia Lúcia são iluminadas ao fundo, ambas sentadas. A primeira tricota . A segunda está apoiada no espaldar da bengala. Francis aparece ao fundo, quase invisível.
Meg - (ensimesmada)
É humano sentir dor, Meg! Você não sabe se é um castigo merecido, só saberá quando estiver do outro lado, por isso sofra, suporte cada pulsar dessa maldita agonia. Suporte! (Num grito) Clara! (Divina pára de tricotar e mantém olhar de cumplicidade com Tia Lúcia)
CLARA ESTÁ VOLTANDO COM UMA CARTA ABERTA NA MÃO .
Clara - (empurrando-a para a cama)
Uma carta de Nair, Meg. Ela vem nos visitar logo . Ouve...
Meg -
Arranque isto de mim...
Clara -
Ssss! (lendo) “Queridas irmãs, minha alma pede que eu as veja e as possa beijar...” quanta eloqüência há em Nair...
Meg-
Não quero que ela venha me ver assim. Ficaria melhor se pudesse vir quando eu estivesse com uma aparência decente.
Clara -
“... que as possa beijar. Uma saudade tentou-me e decidi percorrer os milhares de quilômetros que nos separam e ir. Por que, finalmente, não mandam instalar um telefone? Ficam embrenhadas nesse fim de mundo e não podemos nos comunicar freqüentemente.” (Riem Clara e Meg) Nair é muito peculiar quando escreve. Que referências articuladas, não é mesmo, Meg?
Meg -
Somos iguais, Clara . Herdamos dessa educação que nos impuseram, a delicadeza e a finura britânica de nossos pais e avós. Como eram perfeitos quando nos passavam a tarefa de experimentar as boas maneiras em tudo que fazíamos.
Clara -
Também era delicioso quando resolviam abrutalhar a rotina cansativa de vozes baixas...
Meg -
Aquilo eram brincadeiras! Queriam nos demonstrar o quão terrível era ser rude.
Clara -
Nunca foram esnobes.
Meg -
Nunca!
Clara -
Ela diz que recebeu um telegrama falando sobre seu mal estar, Meg.
Meg -
Ah! Por que foram incomodá-la assim, pobre Nair. Deve estar imaginando que tenho alguma doença horrível. Você telegrafou?
Clara -
Nem posso imaginar quem... (Silêncio longo)
Divina -
Quando eu era ainda uma garotinha, aqueles pestinhas do fim da rua, esmagavam besouros com os dedos... Nunca pude olhar para feridas abertas de animais sem quase perder os sentidos.
Tia Lúcia -
Quieta, Divina! Concentre-se...
Divina -
Eu só estava recordando, tia. Quando vou terminar esse poncho, meu Deus?
Meg -
Continue, Clara ...
Clara - (como despertando)
São só mais algumas palavras e finaliza . “abraços antecipados de Nair para a doce Clara ...” Como ela é gentil. (rindo) e, escute : “... e para a minha querida Melina Gabriela, a quem incompreensivelmente alcunham de Meg.” (riem ambas) realmente, Nair não pode aceitar que não se diga seus nomes, Meg.
Meg -
Ela não compreende o quanto me causa rubor este nome duplo? Meus ouvidos acostumaram-se ao simples e bom Meg. Apenas. (divertida) Não a deixe colocar Melina Gabriela em meu epitáfio, Clara, prometa-me.
Clara - (abraça-a, de repente)
Não, somente Meg... Meg... (Recompondo-se) você borrifou aquela colônia no pescoço?
Meg -
Foi após o banho de ontem, ainda exala?
Clara -
Tão suavemente. Lembra-me as brisas das montanhas. (Tempo) beba seu medicamento . (Meg recusa) é preciso, Meg. Por favor!
MEG ACEITA ATÔNITA O COPO . CAI A LUZ .
Cena 3 - Divina , Tia Lúcia e Francis
Divina -
Sempre quando chego na mudança dos pontos o novelo embaraça, Tia Lúcia .
Tia Lúcia
E o que tem isso? Não posso me preocupar com novelos e com suas falhas de má tricotadeira, Divina . Devo beber uma xícara de chá .
Divina -
Deve, sim!
Tia Lúcia -
E então?
Divina -
Então?
Tia Lúcia -
Não me prepara o chá?
Divina -
Tenho as mãos atadas com lãs e novelos e agulhas, Tia Lúcia ... Como espera a senhora que eu vá até a cozinha lhe preparar chás?
Tia Lúcia -
Má criada!
Divina -
Devo ouvir, devo ouvir essa acusação?! A boa Divina, devotada, servil e amorosa, após anos e anos de cuidados com a velha senhora ...
Tia Lúcia -
Oh, está bem! Nada de chá, nem de lamúrias também. (Tempo) Peste!
Francis -
Tia, tia Lúcia: Não me evite a senhora também, como se eu fosse uma anomalia. Meu coração está doente. Pulsa rapidamente, como se estivesse pronto a levar um susto... ou coisa assim. Minhas irmãs estão distantes. Se tivesse feito-lhes algum mal, não me esqueceria... a senhora do mesmo modo não me responde, tia. (olhando para longe) Que dia comprido!
Divina -
Pelo odor de petúnias aí vem a irmã feliz e casada ...
Tia Lúcia -
Bem capaz! Tu tens um faro de bicho ...
Divina -
Não disse?
Cena 4 - na sala, depois no quarto, utilizando os dois ambientes . Nair entra com malas . Em seguida Clara, com mais malas . Tia Lúcia e Divina caminham entre as cenas, sem serem vistas .
Clara -
Não queríamos preocupá-la!
Nair -
O que espera que eu pense sobre isso?: recebo um telegrama de Divina, repito Divina, que minha Melina Gabriela está doente... Estonteante, concorda? Não obstante, deparo-me com um quadro terrível com minhas irmãs envolvidas, e, se não fosse um telegrama... Crê´n Deus Pai! eu, em tempo nenhum, estaria ciente dos fatos. Faça-me o favor, Clara, custava me notificar? Onde está minha querida Melina Gabriela?
Clara -
Meg, chame-a por Meg, Nair. Sabe como ela odeia os dois nomes.
Nair -
Se os tem porquê não pronunciá-los? No quarto? (Estaca) o que tem ela? Não está transfigurada, está?
Clara -
Tem dores... Suas vísceras... Deve imaginar. Apenas pálida e perdeu a visão, coitada! O farmacêutico diz que o diabetes...
Nair -
Como puderam me esconder tudo? Eu, no meu distante mundo, crendo que são felizes como sou e... isto! Falta-me coragem para entrar.
Clara -
Ficará contente em ver você .
Nair -
Não é contagioso, é? (tempo) me dê água . Preciso de um tempo antes de vê-la .
(Senta-se)
Clara -(servindo-a)
Hugo não veio com você?
Nair -
Hugo? Não . Não pode, simplesmente há coisas a serem resolvidas nos negócios. Inadiáveis. Ele quis vir, mas eu o impedi dizendo: Agora precisamos de você aqui, querido, não sabemos se teremos que dispor de algum dinheiro para minhas irmãs.
Clara -
Estamos bem, não se preocupe!
Nair -
Bem? O que isso significa?
Clara -
Temos nossas economias e... tia Lúcia...
Nair
E ela? (olham ao redor)
Clara
Na fazenda, com Divina, acho... Bem, ela nos encarregou de continuar recebendo os alugueres das chácaras até que se possa fazer a divisão.
Nair -
Sim, eu me lembro desse acordo entre nós. (bebe todo o conteúdo do copo) como se demora para chegar neste fim de mundo! Nem me lembrava mais direito ... Desci
no aeroporto da capital, subi num ônibus até aquela pequena estação no lado oeste, consegui um táxi até a última cidade há duzentos quilômetros daqui e, o resto do trajeto percorri de charretes.
Clara -
Imagino como está exausta!
Nair -
Imagine como estou exausta!
Divina -
Realmente, Nair teve muito cuidado... sempre tão jovem e intensa... e, claro, muitíssimo bela!
Tia Lúcia -
Que impertinência, Divina! Felicidade torna-nos belos, todavia!
Divina -
As almas deviam deixar as rabugices para trás quando deixam os corpos.
Tia Lúcia -
Divina! A hierarquia prevalece tanto lá como cá!
Divina -
Tia Lúcia, a senhora não tem certeza dessas palavras. Tem?
Tia Lúcia -
Ora, se tenho! Você sempre foi uma pretinha intrometida! Uma agregada do meu cunhado . O erro deles foi tratá-la como gente da casa, eu avisei, estão criando um Judas aqui! (outro tom) Não devíamos ter ido para a fazenda naquele dia fatídico. (outro tom) Um Judas!
Divina -
Deve ser por essa sua injustiça que nos colocaram juntas depois que elas... Do consumado.
Tia Lúcia -
Quieta! Vá buscar meu chá!
Meg -
Clara! Quem está aí? Venha me pentear.
Nair -(comovida|)
Jesus! É melhor ir vê-la, Clara . Prepare-a, diga que estou aqui e se quer me ver.
Clara -
Natural que quer.
Nair -
Que sina a sua, Clara!
Clara -
Não se preocupe. (Vai para o quarto) Meg, tudo bem?
Meg -
Quem chegou? Nair?
Clara -
Sim. Está resistente em entrar.
Meg -
Pensa que estou horrível, não é? Estou? (Chama) Venha, Nair... (À Clara) me dê o líquido!
Clara –
Beba!
Nair - (vindo da sala, depois de respirar profundamente. Ao entrar no quarto tem uma expressão de asco)
Melina Gabri... Meg, querida ... (toca-lhe) Sinto tanto!
Meg -
Sei que sente!
Nair -
Entretanto, deve-se abrir as janelas, meninas!
Clara -
Estão emperradas!
Nair -
Ah!
Meg -
Hugo ... ?
Clara -
Negócios importantes, Meg!
Nair -
Está com uma ótima aparência, Melina !
Meg -
Estou? Não posso me ver, Nair! Tudo o que peço nas orações, todos os dias, é que eu possa enxergar as minhas mãos novamente.
Nair -
Seu estado é passageiro, Me... Meg. Em pouco estará caminhando e colhendo flores como sempre gostou de fazer. Anime-se, meu amor, Clara e eu dedicaremos nossa saúde em seu favor. Deixarei Clara descansar dos afazeres uns dias e tomarei eu mesma conta de tudo . Como nos velhos tempos. Repouse. Tomarei um banho e mais tarde falaremos. Ah! Trouxe-lhe um corte de cetim dourado. Com suas
mãos de fadas, seguramente inventará um magnífico vestido (As três riem) Inventar não é mesmo o termo correto para um vestido . Vamos, Clara, ajude-me com as malas ... (sai do quarto e prostra-se na cadeira da sala . Clara vem em seguida)
Nair -
Clara, Clara, Clara ... Ela está tão magra! Grita quando vêem as dores?
Clara -
É corajosa!
Nair -
Que suplício! Vê-la acabar assim... Uma mulher como ela! (De repente) e o filho?
Clara -
Adônis! Adônis não se acostumava com o silêncio, quebrado apenas por mugidos aqui e ali do gado, pios de corujas à noite...
Nair -
Como eu! (mexendo em papéis sobre a mesa) Convite ?
Clara -
Nada especial! Senhoras da igreja que deram um chá para as obras da capela . Já faz bastante tempo. Não fomos! Mas guardei o convite. Não é delicado?
APAGA-SE A LUZ. Cena 5 - DIVINA ,TIA LÚCIA e FRANCIS
Tia Lúcia –
Providencie a venda de tudo. Como me dói voltar aqui, Divina!
Divina –
Até mesmo a mesa antiga da cozinha?! A senhora sempre disse que da mesa não se desfazia nem por decreto...
Tia Lúcia –
Esqueça. Venda tudo. Pelo preço que conseguir. E o que não conseguir vender, doe. Até mesmo para a sua igreja duvidosa.
Divina –
A senhora quem sabe. (apanhando um porta retrato) Ai, tia, que pena! O porta retrato inglês todinho de prata... a única fotografia de Francis. Foi como a conheci: por meio dessa foto. Toda de branco, como uma noiva!
Tia Lúcia –
Noiva!!!
Divina – (apanhando o convite)
Antes tivessem ido. Caridade é uma das poucas maneiras de se aproximar de Deus.
Tia Lúcia -
Bobagem, cara Divina! Principalmente quando os benefícios vão abençoar as mãos de sacerdotes hipócritas. Como os que temos na vila .
Divina -
Cada vez mais me convenço que estou ao seu lado para salvá-la do pecado .
Tia Lúcia -
Tu é que sobrevoas a mente por aí, com tamanha benignidade que causa arrepios a mim. (olha para cima) é possível tão imensa ingenuidade e credibilidade? O mal é deixar a vida ainda jovem, antes que toda a verdade seja revelada. Existir é uma decepção ininterrupta, Divina!
Divina -
Continuo me perguntando: em que parte de sua biografia vieram os urubus e defecaram em sua cabeça?
Tia Lúcia -
Bem, não a compreendo e nem sei o que quis dizer exatamente com essas falas conturbadas. E depois, não me lembro de nenhum urubu. Tenho sede, negrinha, vá atrás de meu chá.
Divina -
Que chá? Me deixe em paz.
Tia Lúcia-
Vê? Aonde ocultou a infinita bondade? Eu sei como são as pessoas: vivas ou mortas sempre vis, vulgares e sem nada de uma boa educação inglesa . Um chá é sempre um ritual marcado pela elegância, pelo propósito da calma rítmica que traz ao coração e, principalmente pelo tempo que ele leva para esfriar totalmente; tempo em que o pensamento conta toda a história .
Divina -
Doidices! Chá nada mais é que uma água suja e sem gosto definido! Como estou cansada, como estou cansada! (Para o alto) Deus, ou sei lá quem é o dono das linhas tortas, me livra desse peso morto . (para a Tia Lúcia) Eu não nasci para carregar a avaria de outros. A senhora é tão perdida...
Tia Lúcia -(tempo)
Não! Acho que não sou, não! Não, em absoluto . Eu não estou perdida . E agora me diga, negrinha: sabes que não nos é permitido efetuar essa espécie de ações incomuns, não sabes?
Divina -
Do que está falando?
Tia Lúcia –
Queres causar uma tormenta nas pobres mulheres? Como se pode comunicar entre os dois lados?
Divina -
Se for sobre como sabermos o que se passa com elas - foi uma ordem superior.
Tia Lúcia – (irônica)
Ordem? Artimanhas e feitiçaria, isso sim. (curiosa) Por que não me falastes sobre a ordem?
Divina -
Desde quando lhe devo submissão?
Meg - (num grito horrível, no escuro)
Clara!
Tia Lúcia - (sem assustar-se, naturalmente)
Tivemos uma família bastante infeliz aqui. Meg, por exemplo, devia ter sido hospitalizada, é sempre um martírio tratar de doentes em casa.
Divina –
Feitiçaria ou não, dona tia Lúcia, quando se dá o que foi cometido nesta casa, continuamos assim: acreditando que tudo continua. Até que se prove o contrário.
Se não tivéssemos ido para a fazenda nenhum incidente teria acontecido. Se você não tivesse mandado o telegrama para Nair.... se Adônis não estivesse numa escola tão longe... se Meg fosse para o hospital... se Clara... se, se, se... ai, meu Deus! Como podem achar que tudo está bem?
Divina -
Ah! O bendito nó, outra vez! Nunca que acabarei o poncho...
Tia Lúcia -
Me responda. Pare de se ocupar com coisas inúteis, negrinha!
Divina -
Inútil seria a sua bengala se aceitasse que não precisa mais dela. Quanto ao poncho, minha senhora, é uma encomenda suprema .
Tia Lúcia -
Ainda preciso da bengala, e mesmo que não precisasse, considero um artigo de elegância insuperável. Hum! Encomenda...
Francis -
Meu coração está doente. Pulsa rapidamente, como se estivesse pronto a levar um susto... Ou coisa assim. Não me lembro de hoje pela manhã, apenas desse sol no meu rosto, há horas... Vocês passavam por mim ainda a pouco, eu tentava tocá-las, mas suas peles desviavam-se de meus dedos... Além desse temor no coração, tenho uma fisgada aqui no pescoço. O que foi que eu fiz? Se papai estivesse aqui agora, eu diria a ele como estão me tratando, papai lhes daria o castigo merecido, tenho certeza. Tenho certeza. O sol não se põe, é um dia muito longo este. Não alcanço mais que quatro passos, vou e volto, vou e volto. Lá longe tem uma mão estendida, parece que me chama para perto dela, mas não consigo alcançar... (de repente com enorme horror) Meu Pai do céu, como estão diferentes todas vocês! Olhem-se no espelho, envelheceram um bocado desde o café da manhã. Quem é essa mulher ao seu lado, tia? Alguma criada, com certeza. (distante) Eu sei! Não me perdoam por ter amado do jeito que amei, eu sei. No entanto, sucessivamente confiei nos homens, me convenciam que eu era bela, a mulher de suas vidas... Prometeram-me tantas felicidades e, quando estava certa de que seria o último, me deixavam. Jesus! Tenho visto nos olhos de papai uma imensa mágoa, mas seus lábios me sorriem! Será que não sou uma boa filha, assim como não sei ser uma boa mulher? (Já não vê mais ninguém) Pra onde foram? Tia Lúcia! Essa luz me cega... Que dor, que dor... Não há sombra. O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? (desaparece)
Cena 6 - OUVE-SE UMA MÚSICA . LUZ EM NAIR, NA SALA, SAINDO DE PERTO DE UM APARELHO DE SOM, ONDE COLOCOU A MÚSICA QUE OUVIMOS . CLARA ENTRA, ASSUSTADA E PÁLIDA . MEG SENTOU-SE NA CAMA .
Clara -
O que é isso?
Nair -
O que?
Clara -
Música?
Nair -
Ah, isso? Trouxe-lhes de presente... Colocam-se esses pequenos discos, que chamamos de Disc Laser´s...
Clara -
Tire isso... Meg não suporta música. Eu não suporto música.
Nair - (pára a música)
O que está me dizendo, Clara, vocês amavam o piano de... Onde está o piano?
Meg - (que se levantou, atordoada chega à sala)
Comemos o piano, Nair. Comemos!
Clara - (corre para apoiar Meg)
Meg, não devia ficar de pé! (senta-a na cadeira)
Nair - (atônita)
O que está acontecendo aqui?
Meg -
Foi o que ouviu, Nair! Vendemos o piano e também os móveis que vieram com nossos avós... Não tínhamos como nos manter. Os remédios são caros. A comida é cara.
Clara -
Meg!
Nair -
Mas... E a renda?...
Clara -
Os inquilinos estão passando por dificuldades, como todos, não têm como pagar o arrendamento. Quando Divina estava aqui, prestava alguns serviços, plantava nos fundos da casa, (crescendo para o choro) ordenhava uma ou duas cabras que tínhamos, tratava de galinhas e nos dava ovos, lutava pela nossa sobrevivência porque era agradecida ao nosso pai que a criou como filha. Quando Divina se foi, cadê experiência para sustentar nossos hábitos nobres, de moças bem educadas? Perdemos o contato com o mundo, os animais ficaram doentes e um a um inutilizaram-se, não sabíamos como tratá-los e nem que era preciso regar a horta . Nos acostumamos a ter tudo o que precisávamos... E tudo o que precisávamos era ir vivendo... Sem nenhuma esperança... Sem nenhuma crença... Sem nenhum amor... Foram todos embora e nos deixaram sem pés, sem abraço, minha irmã, sem colo, sem filhos, sem música!
Nair - (depois de um tempo)
Estão loucas se julgam haver vida melhor que esta!
Meg - (num suspiro)
Ai! Então, você não é feliz?!
Nair -
Feliz? Ham! Sou capaz de dançar por horas a fio, sem descobrir bolhas nos pés.
Isso é felicidade? Posso me olhar o dia todo ao espelho, e retocar meus cílios e batom, consecutivamente. Isso é felicidade? E, também, utilizo cartões de crédito, conta bancária, tenho um motorista que dirige meu carro quando vou a passeio a algum lugar. Felicidade? Ah, sim, meus dois filhos: a mais velha mora na França e
mantêm contato duas vezes por ano: um no aniversário de Hugo, para que Hugo não esqueça que ela precisa do dinheiro que ele deposita fielmente todo mês e a outra ligação fica para o Natal... Provavelmente porque há neve e sinos para lembrá-la que eu existo . O outro filho, Hugo Francisco como o pai, começou a freqüentar boates, bares, e hoje não sei o que freqüenta, pois pouco dá o ar de sua presença. Tão presente quanto esta parede vazia. Isso é felicidade?
Meg -
Isso é possível?
Nair -
É.
Clara -
Achávamos...
Nair -
Achavam?
Clara -
Imaginei que tinha tanto prazer em viver que...
Meg -
Clara, meu bem!
Nair -
E o que me dizem do homem com quem me casei? Arranjou um jeito de estabelecer vínculos com uma bela jovem, deu-lhe filhos, casa, carros... Eu fingia que não via, que não era comigo... Fiz que fiz, até que aos poucos eu me tornei a outra, o recebendo vez em quando em casa para uma ligeira recordação de nossas trepadas.
Meg e Clara -
Deus!
Nair -
Valorizar! Palavras, gestos, decência ... Eis o que importa! Justas causas para justos propósitos. Metemo-nos numa enrascada, filhas! Fomos pisoteadas pelo destino . Sempre que houver uma chance, pequena que seja, caçoarei do mundo!
Meg -
Meu Deus!
Nair -
Reaja, Meg, não fique entregue aos caprichos de Deus. Ele a fez para ser eterna . Tenho vontade de dizer uma palavra bem suja .
Nair -
Sejamos ridículas e tudo ficará mais fácil. Quanto ao dinheiro, não se preocupem, de verdade ... Juntei uma quantia considerável estes anos todos.
Clara -
Não quer se deitar, Meg?
Meg -
Estou me sentindo melhor. Posso agüentar um pouco mais.
Clara - (indo pegar um pequeno baú)
Veja, Nair, ainda temos estas jóias...
Nair -(espalhando as jóias na mesa)
São as jóias que Francis ganhava dos noivos antes que eles partissem?
Meg -
Não fale desse jeito de Francis, pobrezinha! Nunca teve sorte com os homens!
Nair -
Qual de nós teve? Ao menos ela teve coragem de se enforcar e parar de sofrer.
Nair -
Francis teve a hombridade de interromper a selvajaria que há entre os seres vivos.
Clara - (mostrando um anel)
Francis recebeu este de Pedro!
Nair -
É falso! A pulseira também. Olhem, um dia eu até poderia ter acreditado que essas lascas de vidro fossem brilhantes. Um verdadeiro tesouro falso. Como os homens que as ofereceram.
Tia Lúcia -
Francis, como era linda... Por que não tenho notícias dela? Que mulher era em vida e qual permaneceu depois dela?
Divina -
Segundo meus contatos superiores ainda está como no dia de sua morte, está em trevas tão profundas, que nem mesmo as mais puras orações arrancariam Francis de lá.
Clara -
Com o que, estivemos guardando inutilidades em casa?
Meg -
Orgulho-me de ter algo do passado que contenha as energias de nossa irmã, Clara, falsas ou não, pertenceram ao sofrimento dela e é isso que permanece.
Nair -
Quanto pode se alegrar com a hipocrisia, Melina Gabriela? (tempo) recolocarei a música e dançaremos... (O aparelho não está mais lá) que fizeram com o instrumento, onde ouviremos os discos?
Clara -
Pare de sonhar, Nair!
Divina -
Tia Lúcia? Teremos um pouco de música?
Tia Lúcia -
Hoje, não! Nada deve afetar os pensamentos. Quaisquer melodias influenciariam o andamento dos raciocínios. Deixemos a casa apenas com os sons das palavras.
Divina -
Finalmente, devo concordar.
Clara - (indo ao quarto buscar o copo de Meg)
Seja como for Meg tem que tomar a substância de quatro em quatro horas.
Meg -
Querem que eu volte para o quarto?
Nair -
Fique, aproveite esse tempo longe da cama, querida .
Meg -
Mas, Nair, onde jogarei o liquido sentada aqui?
Nair -
Como?
Meg - (depressa)
Tenho certeza que Clara está me envenenando .
Nair -
Meg... (Clara volta) o que está dando para ela, Clara? Clara -
Beba, Meg, antes que venha a crise.
Meg - (fica com o copo parado no ar)
Me sinto bem, Clara .
Nair -
Não quero que ela beba isto se não quiser. Melina Gabriela tem o direito de decidir se quer ou não ser medicada com a substância .
Clara - (encarando Nair com uma expressão horrível)
Chega no fim e quer mudar o rumo natural de nossas vidas?
Meg -
Eu bebo, não se indisponham por minha causa .
Nair -
Acredita em liberdade, Clara? Pois estou de posse do mais nobre sentimento, alma sem culpas.
Clara - (arranca o copo das mãos de Meg)
Basta! Se quer prolongar seu sofrimento faça tudo sozinha .
Nair -
Por que quer matá-la?
Clara -
Seria um alivio para ela e para mim, também. Não imagina o quanto me faz infeliz não mitigar as dores dela .
Meg -
Eu sei, Clara, eu sei. Sou grata, sinceramente!
Clara -
Não quis abandonar a obrigação de conservá-la viva, mas parece-me injusto adiar o que é fato ...
Meg -
Embora eu compreenda, somente Deus tem esse poder, Clara . Por isso nunca bebi um só trago de seu veneno, meu bem. Esvaziei cada gota dele no meio das pernas, para que você o limpasse junto com as minhas fezes e urina .
Clara -(num longo suspiro)
Elementar...
Nair - (agitada, percorrendo os ambientes)
Ansiava por um retorno às origens, aquelas que considerava exaustivas e mentirosas, mas que me fizeram falta . Ledo engano . São horríveis. Esta casa tem o aspecto da doença, a cor da angustia e o fedor de carne morta .
Tia Lúcia -
Divina, estou com frio!
Clara -
Havia bondade na minha intenção.
Nair -
Ham! Faça-me crer nessa bondade e me renderei aos caprichos da vida. Do contrário, cale-se e morra, Clara . Uma boa vida é a que não deixa indícios.
Clara -
Por que razão esse hediondo Deus criou as mulheres? Ele as odeia tanto assim?
Meg -
Se não somos felizes ao menos não vamos reagir dessa maneira. De que adianta praguejar, minhas irmãs?
Divina - (num presságio)
Precisamos de um alento, Tia, deixe soar alguma canção de amor.
Tia Lúcia -
Não, agora consigo senti-las proximamente... nenhuma música, por favor, Divina. Não me faças segredo de nada: diga-me o que sentes, quero entender se são conscientes; se conseguimos apenas evoluir com o sacrifício, com o sofrimento, elas são leais ou desleais com a dor?
Divina -
O padecimento é que é desleal para os que procuraram a alegria.
Tia Lúcia -
De onde surgem essas falas, negrinha? Dizem esses disparates lá na sua igreja?
Divina -
Isso é o que sinto. Minha crença nada tem haver.
Tia Lúcia -
Ainda vais padecer por abster-te da verdadeira fé e procurar nas religiões marginais, como a tua, um motivo para os mandamentos Dele.
Divina -
Eu O encontro em qualquer lugar, tia Lúcia. E tenho plena certeza da minha crença, ao contrário da senhora que não sabe o que quer. Estou aqui, disposta a esclarecer todas as suas dúvidas, na medida do possível, é claro, mas a senhora não! Uma hora acredita em mim, noutra me destrata e ainda tem a impureza de criticar a minha religião...
Tia Lúcia -
Quieta, Divina! Estou procurando escutar!
Divina – (perplexa)
Escutar?
Nair - (abrindo uma mal sobre a mesa, rude)
Trouxe mais presentes! Este lenço e esta linda toalha de toucador trouxe para a nossa querida Clara. Ah, e também esta colônia francesa! Não é nova, mas é que minha alergia não se deu bem com ela. Uma caixinha de costura feita a mão para a doce Meg, e dentro os acessórios. O tecido acetinado para o vestido. Aqui está, Clara, o pequeno enxoval que estava bordando para a minha filhinha e, desde sempre inútil para ela. Você o usará melhor. Prendedores, linhas, agulhas, esponja para pó facial, cosméticos, hei! As pílulas para enxaqueca! Duas ou três caixinhas de chá indiano e... oh, Melina Gabriela, veja o que lhe trouxe: uma mortalha - na sua cor predileta.
Clara - (arranca-lhe a mortalha das mãos)
Meg não enxerga, víbora!
Meg -
Clara ... Eu posso ver através das lembranças. Não se zangue! Agora ou depois a mortalha me será útil.
Clara - (prostra-se no colo de Meg)
Ai, Meg, me perdoa, me perdoa ... Não sou uma assassina!
Meg -
Meu bem...
Nair -
Providenciarei um chá. Jasmim?
Clara - (depois de um tempo)
Jasmim nos alegrará!
Meg -
Tia Lúcia adorava chá de Jasmim! Também beberei uma chávena dele.
AS TRÊS SORRIEM. DEPOIS DÃO PEQUENAS RISADAS, ENTRE LÁGRIMAS. A LUZ PERMANECE EM DIVINA E TIA LÚCIA . Cena 7 - NO QUARTO
Tia Lúcia -
Elas ainda se lembram do meu paladar requintado!
Divina -
A senhora conseguiu mesmo ouvir?...
Tia Lúcia -
Mesmo depois de tantos amargores, lembram-se de que adoro chá de Jasmim.
Divina -
Vê? Nem tudo está perdido .
Tia Lúcia -
Perdido? Não, Divina, apenas tu se continuares indo aos cultos clandestinos.
Divina -
Se não fossem eles a senhora não saberia como elas estão!
Tia Lúcia -
Vendo por este lado ...
Divina -
Sempre estou certa!
Tia Lúcia - (numa risada rouca e fraca)
Sabe-se lá porque a mantenho junto a mim...
Divina -
Entendo uma coisa: é o mesmo sentimento tanto lá quanto cá. Mortos ainda vivemos, vivos também estamos mortos. A linha divisória está para toda a gente assim como o pensamento está para a busca de todas as respostas.
Tia Lúcia -
Quando, afinal, vais me servir o chá, negrinha?
Divina -
Acho que não tenho escolha, não é? Ou termino o poncho ou lhe sirvo chá. Que bela rotina tenho eu!
Tia Lúcia -
Se temos que ficar aqui, esperando algo, que seja como seres humanos normais. E depois, minha negrinha linda, uma gota a cada duas horas prolongará a resistência de nosso sangue.
Divina -
A senhora tem cada uma!
Cena 8 - NA SALA . NAIR SERVINDO O CHÁ . ESTÂO SENTADAS AO REDOR DA MESA, REPLETA DAS BUGIGANGAS QUE ALI FORAM DEPOSITADAS DURANTE AS CENAS .
Nair - (propondo um brinde)
Ao futuro de nossas vidas!
Clara -
Ao passado!
Meg -
Ao presente, enquanto o podemos dominar...
Nair -
Sinto saudades de Francis.
Meg -
Também de mamãe e papai!
Clara -
Éramos amadas! Se algo ficou sem explicação foi por merecimento, concordam?
Nair -
Acredito, que depois deste brinde não haverá necessidade de recordarmos... Sinto um arrepio como se estivessem nos espionando todo o tempo.
Meg -
Se puderem dizer a meu filho que eu amei, digam!
Nair -
Creio que não teremos oportunidade de dizer-lhe, Melina Gabriela...
Meg -
Me chame de Meg, sim?
Clara - (sorri)
Meg nunca concordou com os dois nomes juntos, Nair! (de repente, distante) Estive pensando, Meg... Nair... Se por um descuido do acaso eu tivesse tido uma oportunidade brilhante de ser feliz, como me veriam?
Meg –
Oh, que pergunta, Clara! Não sei. Nesse instante não me valeria saber, pouco vejo, você sabe. Ahn! Muito provável que eu a observasse um pouco mais, certamente haveria uma luz terrível saindo de seus olhos. Mas, se é assim, assim fica, meu bem. Meu coração está cansado!
Clara -
Gostaria que houvesse música, que fosse a última vez, mas que houvesse!
Nair -
Os anjos estão dormindo! Espere...
Divina - (entrando com uma carta na mão)
Tia Lúcia, carta de Adônis ...
Tia Lúcia - (vindo de dentro)
Oh, leia, Divina, depressa ...
Divina -
Está em Londres! Como foi parar em Londres o nosso pequeno Adônis?
Tia Lúcia -
Leia, Divina, fico irritada com você com razão...
Divina -
“querida Tia Lúcia e minha amada Divina, espero que estejam bem. Estou em Londres, para onde vim tentando resgatar um pouco de minhas origens. Não sei se voltarei um dia, me é difícil esquecer tudo o que nos aconteceu aí. Às vezes o remorso de ter partido, me comove infinitamente. Mas nada pode barrar o destino ou
a fatalidade. Quero acreditar que os amigos aí da vila ajudaram-nas a superar a tragédia de nossa casa. Eu as amo, para sempre. Que meu coração chegue até vocês através destas poucas palavras...” Não entendo estas palavras, tia...
Tia Lúcia - (tomando-lhe a carta e lendo)
“God save the suicides! Adônis.” (tempo) Ele também não esquece, pobre criança .
Divina -
Um dia estaremos todos juntos, novamente. Eu sei, eu acredito nisso .
Tia Lúcia -
Mas quando, Divina? Como é isso? Estragamos o sonho que Deus tinha: um belo e poético paraíso, onde seus filhos vivessem eternamente, luminosos e harmoniosos assim como o coração do Criador. Mas, Ele perdeu a esperança e separou a carne do espírito, Divina, separou. E, dividiu também, todas as possibilidades de termos certezas. Tudo éter! Plenitude dos sentidos que nos encaminham para todos os pontos do universo... Recorrências, todavia. Recorrências. Repetições que somos obrigadas a praticar para entendermos todas as falhas cometidas. Não, nós os mortais, não zelamos o espírito porque nos importa muito mais a vivacidade da carne. Ei-nos detentas do pecado, vilãs continuístas dos degenerados e, que medo me dá acreditar em ti, negrinha. O que tu fazes é magia negra? Oh, sim! Quando se há necessidade de crer, as mentes constroem mecanismos estranhos, fazendo que pobres senhoras, como eu, acreditem no que criaram. Mas, confesso que me aliviam tuas palavras e a calma com que as expõe. (Surpresa) Mentiu-me a Igreja a quem confessei meus delírios... Diz-me a verdade, agora, a alma.
Divina -(vai ao quarto, apanha o poncho já terminado e cobre os ombros de Tia Lúcia) Deus me inspirou a terminar o poncho para aquecer seu corpo, tia. Fique feliz, estarei contigo enquanto me for permitido. E logo, logo, entenderemos tudo. (brincando) Eu, a senhora, a casa, os vivos, os mortos, o mundo... Quer um chá, bem quente?
Tia Lúcia -
Quero! Quando fores para a cozinha, coloque uma música. Quem sabe, lá onde estejam, possam ouvi-la e, finalmente, encontrarem Deus. (Divina sai)
Francis –
Onde estão? Está ficando escuro e me sinto só. Como dói meu peito... o que foi que eu fiz pra todos me negarem desse jeito, meu Deus? Meu Deus?! Preciso de ar... estou sufocada, quero respirar... o sol foi embora... meu ar foi embora... minha família foi embora... o que foi que eu fiz? Calem a boca, eu estou viva, eu estou viva... não quero me arrepender de nada, eu não fiz nada, eu só estou sonhando, sonhando...(põe a mão no pescoço) um adorno cintilante rasga o véu da noite, não pode ser estrelas, deve ser uma nave, irá me reter além de todas as nuvens, vão me tirar à oportunidade de ser feliz mais uma vez... quero ar, preciso viver... (sua voz fica cada vez mais baixa) ainda não disse pra mamãe, pro papai, pra tia Lúcia, pras minhas irmãs do meu enorme amor por eles... Minha voz desaparecendo, deixa apenas o sussurro de meus lábios. O rosto lavado por lágrimas grossas, atado ao véu, limite da minha prisão, infinita dor, eterno anoitecer...
UM SEGUNDO DEPOIS OUVIMOS A MÚSICA. TIA LÚCIA PARECE COMOVIDA. DIVINA VOLTA COM O CHÁ, FICA PARADA, COM A XICARA NAS MÃOS OLHANDO PARA O CORPO DE TIA LÚCIA. MEG, CLARA E NAIR OLHAM PARA A LUZ QUE VEM DA TIA E EXCLAMAM:
As três -
Tia Lúcia!
fim
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