A HISTÓRIA DE TRÊS ÂNGULOS
Peça curta de um ato de ADEMIR ESTEVES
PERSONAGENS:
DÁ
DÉ
DI
3 CADEIRAS – UMA CAIXA DE TV VAZADA – 1 FOGAREIRO SOBRE UMA MESA IMPROVISADA. PANELAS – COPOS – GARRAFAS – LIXO, MUITO SACOS DE LIXO CHEIOS.
DÁ ESTÁ SENTADO TENTANDO FAZER O APARELHO DE TV FUNCIONAR ATRAVÉS DO CONTROLE.
DÉ ACENDE O FOGAREIRO, COLOCA A PANELA COM ÓLEO PRA ESQUENTAR, JOGA MILHO DE PIPOCA E FAZ TODO O PROCESSO RESTANTE.
DI ESTÁ MISTURANDO NUMA GARRAFA OU JARRA COM ÁGUA UM SUCO EM PÓ.
PARECE QUE MAL SE OLHAM. DE REPENTE, DÁ SE CANSA, VAI ATÉ A TV E A LIGA MANUALMENTE. PARECE SATISFEITO. VAI VOLTAR A SENTAR-SE, MAS ALGO O FAZ MUDAR DE PLANOS. BUSCA UM ESPELHO SOBRE A MESA. NÃO FICA CONTENTE COM O QUE VÊ. ELE OLHA PRA DI, QUE ESTÁ MEXENDO O SUCO COM UMA MONOTONIA INTERMINÁVEL. DEPOIS DE UM TEMPO, DI PERCEBE QUE DÁ ESTÁ OLHANDO, RETIRA DO BOLSO UM BATON E ENTREGA A DÁ. DÁ, SORRIDENTE, SE OLHA NO ESPELHO E APLICA O BATOM.
DÉ TERMINOU A PIPOCA. DESPEJA TUDO NUMA GRANDE VASILHA TRANSPARENTE. ATIRA SAL. MOLHO DE PIMENTA. E VAI SENTAR-SE. MAS ALGO O INCOMODA. ENTÃO DÉ COLOCA A VASILHA NA CADEIRA. E APANHA O BATOM JUSTAMENTE NO MOMENTO QUE DÁ O ESTAVA ENTREGANDO PARA DI.
DÉ NÃO PRECISA DE ESPELHO. PASSA O BATOM NOS LÁBIOS E TAMBÉM NAS MAÇÃS COMO ROUGE. DÁ VOLTOU A SENTAR-SE, COM O CONTROLE. DÉ DEVOLVE O BATON, MAS DI ESTÁ COM DOIS COPOS NAS MÃOS, CHEIOS DE SUCO. DÉ PASSA O BATON NOS LÁBIOS DE DI, NO ROSTO E NAS PÁLBEBRAS, DEPOIS DEVOLVE O BATON FECHADO AO BOLSO DE DI. APANHA UM DOS COPOS E VOLTA PRA CADEIRA. DI LEVA O COPO DE SUCO PARA DÁ E RETORNA PARA ENCHER O SEU. SÓ ENTÃO OCUPA SUA CADEIRA. OS TRÊS RESPIRAM. ALGO IMPORTANTE VAI COMEÇAR NA TELINHA.
DURANTE UM TEMPO ELES ASSISTEM. TROCAM A BACIA DE PIPOCAS, BEBEM. A ATENÇÃO ESTÁ TOTALMENTE VOLTADA PARA O PROGRAMA.
DÁ E DÉ COMEÇAM A TER REAÇÕES. ENTÃO, PERCEBEMOS QUE É UM JOGO DE FUTEBOL. DI, LEVANTOU-SE, COLOCOU O COPO SOBRE A MESA E PEGOU A TOLHA QUE ESTÁ BORDANDO. SENTA-SE E BORDA. DI NÃO PARECE ENTUSIASMADO COM O JOGO. MAS, QUANDO DÁ E DÉ SE MANIFESTAM IRADOS CONTRA AS JOGADAS, DI SORRI. DEPOIS RI. OS OLHARES FICAM INIMIGOS. AS REAÇÕES INSTIGAM DISPUTA ENTRE DÁ E DÉ CONTRA DI. CERTAMENTE O TIME ESTÁ SE DANDO MAL, E DI ADORA A SITUAÇÃO.
A LUZ PISCA. FALTA ENERGIA POR UM PEQUENO TEMPO. A TV DESLIGOU. DÁ TENTA LIGAR NO CONTROLE, NÃO CONSEGUE. LEVANTA E VAI DE MANUAL. DÉ ESTÁ SE EMPANTURRANDO COM AS PIPOCAS. FICA SONADO, PESTANEJA E VAI ACABAR DORMINDO DEIXANDO ESCORREGAR AS PIPOCAS PARA O CHÃO. NESSE TEMPO DÁ ESTÁ SE CORROENDO DE RAIVA COM O JOGO, TEM TODOS OS GESTOS DOS FANÁTICOS PELO FUTEBOL.
DI ESQUECE OS OLHOS SOBRE O BORDADO, SEM AÇÃO EXTERNA. QUANDO AS PIPOCAS VÃO AO CHÃO, DI LEVA OS OLHOS LENTAMENTE A ELAS. DÁ TAMBÉM OLHOU, MAS NÃO SE INTERESSA, VOLTA AO JOGO.
DI – parece neve! Cadê o cachorro pra limpar esse chão? (chamando) Du... Du, fiu fiu, vem neguinho, pipoca de graça... vem Du... Du... (À Dá) Você trancou o Du pra fora de novo, Dá?
DÁ – Aff, eu nem vi o cachorro hoje, Di.
DI – que pena! Deve ter fugido pelo buraco do muro. Também, ninguém cuida do bichinho, tadinho. Eu falei, eu falei pro Dé que esse negócio de trazer animal pra viver dentro de casa ia dar rolo. E ele trouxe. Depois a gente pega amor, o bicho morre ou foge, e eu fico sofrendo. E tem que cuidar, não tem? Ele cuidou uma semana do cãozinho, depois foi largando, largando e sobrou mim... como se eu já não tivesse nada pra fazer. Não estou reclamando, sabe... eu gosto do Du. É tão pequeno, fragilzinho. Hoje é dia do lixeiro passar, alguém tem que levar esses sacos pra fora. É o seu dia, Dá. Dá? Você ouviu?
DÁ – ouvi, Di, ouvi, que saco!
DI – é bom ouvir mesmo. Faz mais de dez dias que o lixo ta acumulando aí na cozinha, ta um fedor que ninguém agüenta. Daqui a pouco ta na hora de tomar leite. Ai! Lembrei. O leite que estava aí azedou. Alguém vai ter que ir à padaria buscar. Eu não fico sem meu leitinho antes de dormir. Se não bebo, não durmo. E quem for tem que aproveitar e trazer pão pro café de amanhã cedo. Acho que a margarina ta no fim, também. Isso de não ter geladeira é um problemão, não acha, Dé? As coisas estragam ou tem que ficar comprando toda hora pra não estragar. Eu tento consumir rapidamente, mas não dou conta de tudo. Sabe como é, acabo engordando, passando mal do fígado. Porque você e o Dá só comem porcariada. Pipoca, macarrão instantâneo e salsicha de lata. É uma péssima mania que vocês trouxeram da república. Eu que fiquei esses anos todos aqui pelo menos me comportei bem, adquiri hábitos alimentares considerados normais e até saudáveis, do ponto de vista da pobreza, claro. Às vezes devo abrir uma exceção, como agora, tomando essa água colorizada. A pipoca ainda se salva, porque é milho. Tirando o óleo, não faz tão mal assim. É. Não faz. Quando acabar o primeiro tempo você pode colocar o lixo na rua, não pode? O Dá vai à padaria e eu vou providenciar o jantar e procurar o cachorro por aí.
DÉ – (acorda assustado e vomita a pipoca que deve ter ruminado dentro da boca esse tempo todo)
DI – olha aí o que eu estava dizendo? Que porco! Agora vai ter que limpar, porque o cachorro sumiu. Acabou a mamata de deixar tudo pro coitado do Du... eu estava falando aqui pro Dá, ta escutando Dé? Que na hora do intervalo você vai à padaria, precisamos do leite, pão, margarina, daquela pequena e pode trazer um pouco de frios também. Se não tiver dinheiro manda pendurar na minha conta. E nada de cigarros. Eu fiquei sabendo que você mandou pendurar cigarros na minha conta. Isso não, está bem, Dé? Comida tudo bem, mas cigarro eu não vou pagar. Acho que tem sal de fruta lá no quarto, toma senão vai ficar com essa cara de nojo até depois de amanhã. Te conheço, sei que quando você se enche de besteiras passa mal e fica de mau humor três dias. (para e olha a TV) Isso foi um gol?
DÉ - para de falar, Di. Fico zonzeando com esse falatório que não acaba nunca.
DI – vocês não conversam, vivem pelos cantos amuados, sem falar nada. Vocês puxaram ao pai de vocês. Velho rabugento e fedido. Como ele fedia. Falando em fedor, ta maus esses sacos aí na cozinha. O que deve ter de coisa podre aí. Os filhotinhos de moscas estão subindo pelas paredes. Eu, como não conheci meu pai, acho que me pareço com a mamãe, não é. Ela era dedicada a nós. Eu puxei a ela, sim, faço tudo como ela gostava. Só não tenho muito tempo como ela tinha. Imaginem quando eu arranjar um trabalho, então. Como vai ser?! Vou dar uma olhada no quintal. Quem sabe o cachorro não está enfiado debaixo daquela sucata toda. (anda até o meio da cena, para e fala) e se de repente ele ficou preso numa dessas latas enferrujadas? Gritou, chorou e nós não ouvimos porque o volume da TV ta alto demais. O Du deve ter morrido na ferrugem, isso sim. (sai)
DÉ – (olhando o jogo) Já era. Ta fora do campeonato. (levanta) Você sabe se Di passou os nossos vestidos?
DÁ - (mau humorado com o jogo) Passou! Passou o vermelho com verde e o drapeado cinza. Eu vou com o cinza, já falei.
DÉ – (INDO PARA OS SACOS DE LIXOS AMONTOADOS) mas eu queria o azul, caralho. (vindo para a cena) o lance vai ser na casa dos casados, hoje. (O saco de lixo rasga e tudo despeja no meio da sala) só vai ter casado lá. E só tem nós dois pra esse trabalho. O vestido azul é muito mais cômodo, fácil de subir quando precisar. Vou ter que passar o azul. (Vai buscar outro saco, mas indo pra saída ele também rasga e cai tudo no chão)
DÁ – Não dá pra assistir essa bosta. Que meio de campo é esse, meu Pai do Céu? Padaria? Lixeiro? Só Di pra continuar se enganado.
DÉ FICA TENTANDO LEVAR OS SACOS PRA RUA, MAS TODOS VÃO ABRINDO E ACUMULANDO LIXO POR TODOS OS LUGARES.
DÉ – Pra mim ta tudo bem se for só nós dois pros casados. Eu dou conta e você?
DÀ – fácil.
DI VOLTA. OLHA PRO LIXO ESPALHADO, MAS NÃO TEM REAÇÃO. COLOCA PANELA NO FOGAREIRO. COLOCA ÁGUA.
DÉ – essa água é pro banho, Di?
DÁ – Eu vou tomar banho primeiro, estamos dito.
DI – ia cozinhar umas batatas. Mas pode ser pro banho, então. Só temos essa água. Acabou no reservatório e na torneira.
DÉ – e o cachorro?
DI CAMINHA PELA CASA. ENCONTRA NO MEIO DO LIXO UM VESTIDO AZUL TODO SUJO E RASGADO. VESTE POR SOBRE O CORPO.
DÁ – olha aí o seu vestido azul, Dé. Estava no lixo. Aposto que o bandido do cachorro pegou, usou como brinquedo, acabou com ele e Di pra proteger o safado botou no lixo.
DI – acham que eu poderia fazer o mesmo trabalho que vocês fazem?
DÉ – os homens não gostam assim como você. Gostam de mim e do Dá.
DI – eu poderia ser uma mulher diferente, não poderia? Quando existiam mulheres no mundo as diferentes também existiam. E depois, não se tem mais nada a perder.
DÁ – Já é difícil eles conseguirem alguma comida pra nos pagar aos dois, imagine pra mais um?
DÉ – Quem sabe um deles não traz mais uns dois ou três litros de água como pagamento hoje, né? Quem sabe? E o cachorro?
DI – ele foi mesmo embora. Agora só resta homem no mundo. Poucos, como nós. Lá fora está escuro, escuro, escuro... a natureza é tão ingrata com a gente. Sempre amei a vegetação, o sol, os cachorrinhos. E tudo nos abandona. São cruéis... muito cruéis.
DÉ – (COLOCANDO O DEDO DENTRO DA PANELA COM AGUA.) ainda está fria.
DÁ – o querosene acabou. Deixa o banho morno pra lá. Muito calor mesmo. Muito calor.
DI – ontem fez frio.
DÉ – mas ontem nevou. A gente esqueceu de pegar a neve pra derreter. Idiotas.
ELES PARECEM PERDIDOS. NÃO SABEM BEM O QUE FAZER OU PENSAR.
DÁ – mamãe dizia, que quando havia luz no mundo, também havia esperança. Lembram que ela contava que a mãe dela contava que as mulheres era a maioria no mundo? Nem consigo imaginar isso. Mamãe foi a penúltima a deixar o planeta...
DÉ – não me lembro quem foi a última.
DÀ _ nós não a conhecíamos.
DÈ – é verdade, é verdade!
DI – esse jogo nunca termina? Estranho, queria dizer antes, mas fiquei com vergonha. Eu só consigo ver um buraco...
DÁ E DÉ SE OLHAM. SORRIEM COM PENA DE DI.
DÁ – acho que depende do ângulo que você vê, Di.
DÉ – é Di, eu daqui vejo só uma parte do gramado. Estamos em ângulos diferentes. Você ficou bem nesse vestido azul, Di.
VOLTAM A SENTAR. FICAM UM LONGO TEMPO OLHANDO A PLATÉIA FIXAMENTE. A LUZ PISCA E DIMINIU MUITO, DEIXANDO OS TRÊS QUASE NO ESCURO.
DÁ – vocês não sentem vontade de acabar com tudo de uma vez?
DÉ – é melhor esperar. Quem sabe alguém ainda consiga ter uma idéia brilhante e o planeta volta a ser como era antes?
DÁ – é. Pode ser. Alguém precisa fazer alguma coisa mesmo.
DÉ – alguém precisa.
DI - o que vamos jantar?
NINGUÉM RESPONDE. DI, NA SUA FIGURA CONSTRANGEDORA PEGA A BACIA E COMEÇA A SALVAR AS PIPOCAS ESPALHADAS PELO CHÃO. ESCURECE.
Fim
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